
Tomásia Santa Clara: Nómada movida pela Fé

Tomásia, 79 anos, recebeu-nos em sua casa, no centro de Lisboa, e de lá saímos mais ricas, mais serenas e de sorrisos abertos. Afinal os velhos também sonham.
Folheámos o livro da sua vida, nómada, missionária no mundo, paixão e aventura vividas pela fé.

Com uma vida tão rica e diversa, deve ser difícil eleger alguns momentos marcantes…
Tudo foi marcante, mas vou ousar escolher duas facetas inatas em mim, uma foi ter nascido na ilha da Madeira, uma terra paradisíaca, a pérola do oceano, rodeada pelo mar e pelo céu.
A outra foi ter nascido no meio de uma família muito cristã, cuja vivência religiosa e formação vieram a acompanhar-me sempre.
Quando tinha 15 anos, frequentei um curso bíblico em Lisboa dado pelo cónego Gregório Neves. E eu, como jovem que era, perguntei-lhe: “Qual é a melhor Bíblia do mundo?” A resposta foi imediata: “A Bíblia de Jerusalém, editada em 73 volumes”. Pedi então aos meus pais que me oferecessem sempre no meu dia de anos (06.01.1935) e no dia de natal, volumes dessa obra, que viria a marcar toda a minha existência. A minha vida foi norteada pela fé em Jesus Cristo narrada como palavra de Deus.
Dou graças a Deus por isso!
Prosseguiu sempre nessa fé?
Comecei por ser madeirense. Os meus pais emigraram para Lisboa quando eu tinha seis meses, tornando-me logo nómada, peregrina, caminhante. Todos os anos íamos de férias de verão ao Funchal. A alegria de avistar a terra ao longe, depois de três dias de barco, “terra à vista” era excitante e inesquecível.
Sou uma caminhante, peregrina, andarilha, o mundo veio a ser a minha casa.
Acredito que a vida foi-nos dada para a construirmos, estando nas nossas mãos decidir se faço isto ou aquilo, se aceito este convite ou aquele desafio para ir trabalhar para outro país. Tudo depende das nossas decisões e nisso os meus pais respeitaram sempre os diferentes caminhos dos filhos.
Éramos oito irmãos: cinco raparigas e três rapazes de idades seguidas, com uma grande união entre todos. As duas do meio (a Teresa e eu) viríamos a seguir o caminho do Graal e eu fui a primeira portuguesa a ir viver para a Holanda, integrando-me num ambiente internacional, num grupo com sete nacionalidades. No coração levava apenas a interrogação “vede como elas se amam.”
E de todos ao países…
É comum perguntarem-me qual o país em que gostei mais de viver. Nunca os comparo. Todos os países têm uma beleza humana única, cruzamos e fazemos amizades com povos e raças diferentes – a beleza está aí. Costumo dizer que só gostamos de um país quando lá deixamos amigos fixes, para sempre. A experiência da vida é o que mais nos marca. O que aprendi com os mais pobres retenho na memória para sempre.
Pelos meus 18 anos, numa vivência missionária, em aldeias de Alenquer, aprendi essa grande lição: os pobres é que nos evangelizam… Já trabalhávamos profissionalmente, tínhamos um só mês de férias e tirávamos esses dias para ir viver numa aldeia. Acartávamos o colchão para dormir, aprovisionava-se o necessário para viver, e, conversando com as pessoas e brincando com as crianças, partilhávamos uma vida cristã.
Nunca sentiu pressão da sociedade, da família ou dos amigos para casar, ter filhos?
De facto tinha muito jeito e gosto para crianças. Todos o reconheciam. Cheguei a ser educadora de infância no Beiral e a ajudar a fundar uma creche. Boas lembranças dos cinco anos que aí trabalhei.
Uma vida repleta de desafios…
Sempre aceitei os desafios que me apareciam, e que me levaram até à Holanda, depois a fazer estudos de pastoral e catequese na Bélgica e a seguir ir para o Brasil colocar o que aprendera em prática: quer em favelas, em paróquias e numa universidade. Por todos estes países vim a conhecer gente extraordinária.
Regressei a Portugal quando o Graal cresceu cá e fui chamada a ensinar “Religião e Moral” no liceu de Portalegre e a organizar as catequeses.
A seguir, Portalegre, Coimbra e depois voltei a França para partir para a África do Sul onde fiquei sete anos, a ajudar a integrar a comunidade emigrante portuguesa.
Ajudei a integrar 60.000 pessoas, trabalhava em plano igualitário com o bispo e os párocos. Venci qualquer resistência que tivera contra o apartheid. Conheci todos os países da África Austral na riqueza da sua fauna e flora. Gostei muito de lá ter vivido. Deixei o meu trabalho apostólico para regressar a Portugal, no 25 de Abril, que levou parte da minha família a emigrar para o Brasil.
Fui depois desafiada a partir para o Cairo, secretariar a então presidente internacional do Graal, de nacionalidade egípcia. Novo mundo se rasgava diante de mim. Levei uma vida muito diversificada: apanhei “sarna”, visitei a “lixeira do Cairo” (que acumulava o lixo de 50 milhões de pessoas), ajudei numa clínica um médico libanês, onde assisti à morte de um bebé, etc. Vi as pirâmides, andei de camelo, visitei museus e mesquitas riquíssimos, vi a pobreza e a riqueza como lados opostos da mesma mão.

Já lhe disseram que a sua vida dava um filme? [risos]
Parti a seguir para a Zâmbia. Um país enorme com nove províncias e muitos dialectos. Encontrei-me envolvida no campo de refugiados que existia naquele país, na fronteira com Angola. Aí encontrei povos do Ruanda, Burundi, Sudão, Congo, Tanzânia… de toda a África. Não esquecerei nunca um Natal que aí vivi e onde todas as línguas foram cantadas; uma família que chegava ao campo depois de ter perdido um filho pelo caminho, ao atravessar a pé: Congo, Angola, Namíbia, Botswana. Fui alvo de bombardeamentos feitos pela Rodésia sobre a Zâmbia, tive outros acidentes que me levaram a descobrir a vida como um dom gratuito de Deus e a confiar sempre nele.
Conheci uma família zambiana com quem habitei e me tornou parte integrante da família. Foram três anos muito felizes, acompanhada por gente formidável.
Parti de lá para celebrar em Portugal as bodas de ouro dos meus pais. Ao chegar o meu pai disse-me logo: “não vens apenas para a festa, vens também para me enterrar.”
Um momento de imensa dor…
Com a partida do meu pai, necessitei de repousar num ninho espiritual, para aprofundar mais a fundo o sentido da morte e da vida. Fui então convidada a ir para Jerusalém onde poderia conhecer, visitar, aprofundar e viver a Páscoa de Jesus Cristo.
Chocou-me inicialmente o comércio, o alarido, a confusão de Jerusalém. Mas desvaneceu-se o primeiro choque e revisitei vezes sem conta os lugares sagrados da Judeia, da Samaria e da Galileia. Judeus, árabes e cristãos fazíamos agora parte da tribo de Abraão, filhos do mesmo Deus.
Regressei a África, a convite do arcebispo de Moçambique. Sabia que partia para um país em plena guerra civil, onde se digladiavam povos irmãos: Renamo e Frelimo, procurando implantar lá o Marxismo – Leninismo. Conheci Moçambique do Rovuma ao Maputo (do norte ao sul): a sua dor, sofrimento, fome, nudez, pobreza, um país trespassado por minas e ódios. Experimentei a guerra ao vivo, assaltos, acidentes, etc. Vi também a beleza, a grandeza e a majestade daquele país (ex: Cabora Bassa).
Experimentei simultaneamente a gratuidade do dom da vida, o amor e a ternura de Deus.
Como poderei esquecer, na terra do algodão, ver pessoas cobertas com “sacos de farinha” ou de “casca de árvore”? Como esquecer ver um catequista salvar da morte um colega atacado por “matacanhas”? Ou distribuir com a Cáritas papas de farinha a pessoas esqueléticas? E também não me livrei de 42ºC de febre com a malária que apanhei. Ser missionário é um risco!
Abalei de Moçambique por ter ousado descrever para o “Conselho Mundial das Igrejas, Federação Mundial Luterana e Cáritas Internacional” o que aprendera nos actos dos apóstolos (Act.4,20): “Nós não podemos deixar de falar daquilo que vimos e ouvimos”.
O novo regresso a Portugal…
Neste novo passo da vida, lembro a frase sábia de René Descartes: “Quando gastamos tempo demais a viajar, tornamo-nos estrangeiros no nosso próprio país”. Sem dúvida que isso aconteceu comigo.
Regressei a Portugal para dar aulas de Religião e Moral, em escolas básicas e secundárias em Lisboa, a uma juventude que me encantou.
Tive como alunos a “nata” da escola. A sede de aprender era grande e nunca tive problemas comportamentais com os alunos. Muito vim a aprender com eles.
Teve algum momento específico que sentiu que estava a envelhecer? Que gostaria de vir a fazer outras coisas?
Senti que estava a envelhecer quando cheguei aos 70 anos e estava no ensino. Na escola onde lecionava religião e moral disseram-me: “A partir de amanhã, que é o seu aniversário, atinge os 70 anos e já não pode continuar”. Aí senti uma barreira. Eu gostava dos meus alunos, mais tarde fui aos casamentos deles e conheci os seus filhos.
Foi nessa altura que decidi tirar os seis meses seguintes para pôr ordem na minha vida, estabelecer uma sequência de acontecimentos relevantes ao longo da vida – útil para mim e para a minha família.
Sentiu-se sempre agradecida à vida e a Deus?
Absolutamente, se voltasse atrás voltava a seguir os mesmos passos!
Agora fala-se muito do envelhecimento ativo, e dentro deste movimento há algumas linhas que dizem que as pessoas mais velhas têm que começar a preparar a sua reforma. Aos 65 anos, no caso da Tomásia aos 70, pensar no que querem ser ou fazer a partir de agora. Como é consigo?
Eu não deixei isso para o fim, a liberdade e a responsabilidade estão nas nossas mãos. Pertence-me planear a minha reforma; sonhar com a doação do meu cadáver em vez de gastar dinheiro em flores, para murcharem no dia seguinte; partilhar tudo o que possuo como supérfluo; deixar uma lista feita com os nomes e moradas dos meus amigos, espalhados pelo mundo, para que os meus irmãos os possam informar; preparar os textos litúrgicos e convidar os celebrantes para presidirem à celebração da minha ressurreição.
“O sonho que me norteia e me mantém a caminhar é o reino de Deus.” A minha vida continua escrita na palma da sua mão (Is.49, 15).

Como passa os seus dias?
Acordo às seis da manhã e meço a tensão e tomo a medicação, se for caso disso.
Cuido da minha saúde, sou responsável por ela, deito-me e levanto-me cedo.
Cozinho para mim, sei programar se alguém aparece. Tenho muita família e amigos que posso ajudar e agora tenho tempo para eles. Não preciso de programas, eu encarrego-me de estar atenta a todos.
Não se revê nos modelos tradicionais de apoio à terceira idade, os lares?
Preocupo-me com a cidadania, reconheço a frase do Kennedy (Não procurem o que é que o Estado pode fazer por vocês mas o que é que vocês podem fazer pelo Estado) e gostava de ver um lar da terceira idade a ser construído num lugar que podia ser um condomínio para uma elite. Mas ao invés desse condomínio, que se lembrassem dos velhos sem abrigo, dos que não podem pagar um sítio que preencha as suas necessidades.
Habituei-me a visitar casas de saúde por todo o mundo. Os hospitais são o termómetro de cada país. Vi muitas realidades. Aqui os velhos são deixados a ver televisão todo o dia e os médicos dizem, andem, andem. E onde podem caminhar? Não temos pavimentos adequados para estas pessoas. Onde é que há um jardim reservado para eles?
Já os vi lá fora, a gente pode fazê-lo, porque é que não faz? Não fazemos porque esperamos sempre que o governo faça, as instituições façam, a igreja faça… Há um provérbio africano que diz que a mão que dá fica sempre por cima da que recebe. Os que têm autoridade impõem-se sempre acima do povo. Pusemo-los num pedestal e agora queixamo-nos?
O seu sonho?…
Idealizo um lar num espaço já desativado. Com terreno plano, relvado, para andar, florido, com esquilos e pavões. Um lugar bonito em que o idoso receba a sua família, os seus amigos, um espaço que se tenha vontade de visitar.
Recordo a minha mãe com 94 anos que gostava de cozinhar até ao fim. Teve sempre companhia e afetos. É importante perceber, desde cedo, que somos um ser em relação e desde logo começar a construir uma rede de afetos, está na nossa mão.
Gostava de ir no fim para um lar com outras pessoas, para o meu lar. A vida é eterna, não acaba com a morte. A partir daqui é tudo em ascendência…