
Maria José Raposo, Mulher Independente

Maria José Raposo, 87 anos, nasceu no Algarve. É um retrato vivo das condições e conquistas das mulheres, antes e depois do 25 de Abril.
Num tempo em que as mulheres não trabalhavam fora de casa, Maria José foi exceção.
Lutou por uma carreira, lutou pela sua independência financeira.
Vem para Lisboa sozinha e ingressa na função pública.
Com 26 anos conhece o amor da sua vida e confessa-nos que o “foram felizes para sempre” pode mesmo acontecer.
Sempre lutou pelos seus direitos, pelos seus sonhos.
É determinada, inspiradora e feminista.
Com base na sua história e vivência enquanto mulher, deixa conselhos para as mulheres mais jovens.
Sem a pretensão de falsos moralismos, apenas com a verdade de quem já viveu várias vidas numa só.
Ei-la: a mulher independente.

Como foi a sua infância?
Sou natural de Almancil no Algarve, nasci em 1937, tenho 87 anos.
Não fui criada com os meus pais. Com um ano e meio de idade fui viver com os meus tios, o meu tio era farmacêutico.
Nas horas vagas ia para a farmácia, adorava fazer pacotinhos de bicarbonato de sódio e outras coisas que se vendiam na farmácia.
Nesse aspeto, foi uma infância muito feliz e com um bom nível de vida. Dado o posto do meu tio tínhamos uma vida boa.
A minha mãe ao entregar-me à sua irmã para me criar pensou certamente que eu ia ficar melhor, porque o meu pai não tinha possibilidades económicas.
Teve algum momento marcante durante estes anos de crescimento?
Sim. Existiu um corte, uma viragem, quando aos meus 16 anos o meu tio faleceu.
Recebo um grande choque emocional, não tenho vontade de estudar, e perco aquele ano letivo.
Tive de voltar a repetir o ano para completar o curso, mas já não tive a força para seguir para o ministério primário e recursos a nível monetário.
Qual foi o curso que completou?
Tirei o curso geral do comércio. Aos 16 anos, quando acabo o curso, emprego-me numa empresa de artigos de escritório, que penso que já não existe.
Naquela altura não havia computador, era máquina de escrever, máquina de calcular, portanto, eu trabalhei nisso tudo.
Não altura, não era comum, uma mulher trabalhar numa empresa?
Sim, não era. Entro na empresa com 16 anos e havia oito funcionários homens.
Foi um choque valente. Quando chego ao escritório e vejo aqueles homens todos, só tinha vontade de fugir.
Tive que aguentar e começar a minha vida, não foi fácil, mas foi brilhante.
Como foi este período?
Trabalhei naquela casa 11 anos. Entrei com 16 anos e saí com 26.
Adorei este trabalho. Coloquei aquela empresa a funcionar.
O meu patrão ficou muito agradecido pelo trabalho que desempenhei e reconheceu as minhas competências.
Fiquei a ganhar 100 escudos. Ele não era muito amigo de pagar aumentos, mas eu fui lutando.
Ele não tinha tido uma empregada como eu, e quando chegou a altura da minha saída eu ganhava 550 escudos.
Durante 11 anos aumentou-me 450 escudos.
Quando é que decide abraçar um novo desafio?
Fui crescendo e comecei a pensar que não iria continuar nesta empresa.
Neste local, era impossível programar um futuro, com o ordenado que tinha.
Começo a ler o diário do governo que agora é o diário da república, para me informar sobre os concursos públicos para o estado.
Decidi concorrer a uma vaga para o Ministério das Estradas / Obras Públicas.
Vim fazer o exame aqui, em Lisboa, e de mil e tal candidatos fiquei posicionada no número trezentos da lista.
Sempre tive o bichinho dos miúdos e acabei por conseguir concorrer para uma vaga no Ministério da Educação.
Acabei por fazer uma nova prova em Lisboa, e passado um mês recebo uma carta do Ministério da Educação, a dizer que eu tinha ficado em 4º lugar, com 16 ou 17 valores. Em maio de 1963, foi-me dito “vem para cá”, para nos preparamos para a tomada de posse. Eu não conhecia nada de Lisboa.
Não disse nada ao meu patrão de Faro, porque precisava de ganhar uns tostões.
Então, calei-me, até ter a certeza, de que ia mesmo trabalhar para Lisboa.
Para concorrer ao Estado naquela época tinha de passar pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE).
A PIDE foi informar-se sobre mim em diversas fontes. Eu era muito conhecida em Faro.
Também foram recolher informações sobre a minha família, nomeadamente, os meus pais.
Quando vou dizer ao meu patrão que me vou embora, este diz: “Maria José pode sair. Eu não lhe posso pagar o que vai receber, mas eu já sei a sua vida toda“.
Disse à PIDE a verdade. Que nunca iria arranjar uma funcionária tão boa como você. E que ia chorar a vida toda pela sua partida”.
Como foi a sua vinda para Lisboa?
Vou para Lisboa de comboio, tipo “Linda de Suza”, apenas com uma mala.
Chego ao Barreiro e vi aquela gente toda a correr para o barco.
A medo perguntei se vinham para Lisboa, uma senhora olhou para mim e disse que iam para a estação do Terreiro do Paço.
Era quase 1 da manhã quando chego a Lisboa. Depois apanhei um táxi para o Alto de São João, para casa da minha amiga, que me ia acolher.
De manhã vou para o Ministério da Educação. Deram-me indicações e fiz tudo a pé.
A tomada de posse era em julho e a minha amiga não me podia acolher mais em sua casa.
Tinha outra amiga em Campo de Ourique, que se tinha candidatado aos Correios, e alugado um quarto no prédio em frente da Pastelaria Tentadora.
Como se ia casar em setembro convidou-me a ficar com ela. Pedimos autorização à senhoria e metemos mais um divã no seu quarto. E assim ficou resolvida a questão da habitação.
Sabemos que se casou. Foi uma história de amor?
Foi e vou contar-vos como começou.
Na casa de hóspedes onde passei a morar, havia um senhor muito delicado. Quando o conheci puxou a minha cadeira para eu me sentar. Aquilo deu um bocado nas vistas porque os homens no Algarve não faziam aquilo. Achei que devia ser um senhor muito educado e muito culto.
Noutro jantar, a minha amiga diz-me: “Maria José vais casar com aquele senhor!”
Respondi-lhe: “Estás bêbada! Eu nem vi a cara do senhor, só reparei que era muito educado”.
Ela comentou: “Vais ver o que te digo!”
Como só ia começar a trabalhar em julho fiquei um mês à espera que o tempo passasse.
Não conhecia ninguém, passava os meus dias na casa de hóspedes, para a qual me tinha mudado, em Campo de Ourique.
Ia para a janela, via televisão, perguntava à minha amiga se ela tinha algumas coisas que eu fizesse; bordei uma dezena de coisas naquele mês.
Entretanto, começo a reparar que o tal senhor, que também era hóspede, vinha almoçar e jantar todos os dias a casa.
Estava a bordar na sala e aquele senhor vinha 4/5 vezes a casa. Mas eu ficava calada, era muito tímida.
Um dia estava a bordar e quando a senhoria vem ter comigo, perguntei-lhe: “Diga-me uma coisa, qual é o trabalho do senhor Raposo? Ele entra e sai tanta vez!”
Ela: “A menina ainda não percebeu? Ele vem cá porque gosta muito da menina.”
Se eu tivesse um buraco para me enfiar, era o que fazia, naquele momento.
À noite, ao jantar, o senhor vem ter comigo e pergunta-me “A menina José quer ir ao cinema comigo?”.
Disse-lhe que ia pensar e que já lhe dava a resposta.
Fui ter com a senhoria para saber a sua opinião e ela disse-me: “Pelo senhor Raposo meto as mãos no lume. Pode ir até ao fim do fundo.”
Como foi a vossa primeira saída?
Fomos ao cinema! Qual foi o filme? Não me lembro! [risos]
Saí de lá com mãozinha na mãozinha que culminou em 40 anos de casamento.
O meu marido era açoriano da ilha de São Miguel. Chamava-se Boanerges Raposo.
Quando casámos ele trabalhava numa empresa de máquinas de panificação.
Tinha 34 anos e eu 26. De namoro foram apenas 16 meses.
Nunca lhe liguei aos almoços e naquelas entradas e saídas. Nem chegava a reparar que ele era um borracho.
O casamento foi na Igreja de Santo Condestável, e o copo de água foi na Pastelaria Tentadora, tudo aqui em Campo de Ourique.

Foto: Pastelaria “A Tentadora”, Campo de Ourique
Foram felizes para sempre?
Tivemos um casamento muito feliz. Faz 27 anos que ele partiu.
O meu marido era um homem muito querido. Morreu com cancro da próstata.
Já doente diz-me esta frase “Podes orgulhar-te de ser a mulher que nunca foste traída pelo teu marido.“
Disse me isto com verdade e ternura. Éramos muito companheiros e amigos.
Era aquele tipo de homem que abria a porta para eu entrar no carro, de autocarro saía primeiro para eu descer, na minha época já havia poucos como ele. Era um verdadeiro cavalheiro.
Tiveram filhos?
Tivemos uma filha. Foi muito difícil, porque eu não tinha cá ninguém para nos apoiar. Ela teve que andar em colégios.
Fiquei com um trauma porque deixei a minha filha entregue a outros. Mas gostava de trabalhar e de ser uma mulher que trabalhava fora de casa. Não era o tipo de mãe e mulher para estar unicamente em casa a cuidar da filha.
No trabalho, enquanto mulheres não tínhamos as concessões e os direitos que existem agora.
Tínhamos apenas direito a tirar oito dia antes e depois do parto…
Foi funcionária pública…
Trabalhei mais tempo no Instituto de Alta Cultura, que após o 25 de abril, ficou designado por Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, que hoje é o Instituto Camões. Era chefe de secção onde me especializei na área de expediente e arquivo.
Quando se dá a reforma?
Reformei-me aos 56 anos para cuidar do meu marido, para viver os últimos anos da sua vida ao seu lado.
Ele partiu com 68 anos. Eu tinha 60 na altura.
Como reconstruiu a sua vida?
Quando o meu marido partiu, fiz um mês e tal de luto.
Depois vou logo para a universidade sénior, a primeira que abre em Lisboa, no Camões há 27 anos.
Faço um grupo de amigas, uma delas era a chefe das viagens. Começo a viajar, conheço todo o país e depois é que viajo para o estrangeiro. Frequento a universidade sénior dos 60 até aos79 anos.
Depois venho para a universidade de Campo de Ourique, que deixei no ano passado.
Sente que a vivência da velhice é diferente de homem para mulher?
Totalmente diferente: os homens não têm a nossa resistência.
Nós somos preparadas para ser mães, temos um arcaboiço muito maior. O homem se perde a mulher, fica muito fragilizado, porque ele não se sabe cuidar, falta-lhe o apoio, é muito raro encontrar um homem que consiga sobreviver à perda da mulher.
Atenção, que estou a referir-me aos homens da minha época.
Agora é diferente. Na minha altura a mulher era criada para ser mãe, governar a casa, administrar a família e criar os filhos.
A mulher é uma fortaleza.
Tive um marido impecável, só uma vez é que me fez uma observação. Não queria que eu usasse batom, por causa dos beijinhos. Disse-lhe: “Meu querido eu uso batom desde jovem e não vou tirar.”
Nunca deixei de me arranjar, nem nos piores momentos da vida.
Já doente disse-me: “Maria, minha doce Maria, és a minha vida, és a minha alegria.”
Tive que escrever esta declaração, com medo de a esquecer com a minha dor.
Ao longo da sua vida que lutas teve de travar para adquirir os mesmos direitos ou reconhecimento face ao homem?
As mulheres não iam ao café, no meu serviço não se podia usar calças, não iam votar.
Para se viajar fora do país tinha de se pedir autorização.
Eu como funcionária pública tive de pedir autorização para utilizar o nome do meu marido.
Tudo isso era pedido, a mulher tinha de pedir tudo.
Nunca deixei de lutar pelos meus sonhos, de ser autossuficiente.
Como antigamente não existia comunicação social, como há agora, não tínhamos a noção do massacre da violência doméstica.
O que eu vejo agora na liberdade da mulher, nos últimos tempos é a continuação do massacre e a violência doméstica.
Na altura, não tínhamos a noção da dimensão deste flagelo.
A mulher na liberdade já fala e já se queixa, nesse campo estamos melhor.

Na minha época a palavra amor não era proferida. Eu casei com o meu marido e não se dizia “eu amo-te”.
Com a entrada da liberdade o “amo-te e gosto muito de ti” passou a fazer parte das relações.
No tempos dos meus pais e dos meus avós a mulher não era nada, era a escrava e objeto.
Já não vivi para isso. Apanhei essa fase boa do 25 de abril, a emancipação da mulher.
Nós mulheres, não somos objetos de ninguém: só somos se quisermos.
Que conselho daria às mulheres de hoje?
Manterem-se no seu trabalho, serem sempre independentes, no seu trabalho, na sua vida monetária. Esta independência é muito importante.
Recomendo que lutem sempre pelos seus direitos e valores, quer como mães, como mulheres, como amigas e como funcionárias.
E tenham amor próprio, sempre.
Um sonho?
Continuar a vir todos os dias para aqui, para o Centro Intergeracional Ferreira Borges (Campo de Ourique) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Já viajei muito. Mas gosto muito da relação com os outros, de conviver e aprender.
Todos os dias agradeço por ainda ter capacidades para cuidar de mim e da minha casa.
Continuo a administrar a minha vida, sou uma mulher independente.
Agradecimentos:
Centro Integracional Ferreira Borges, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Magazine Cabelos Brancos @ Todos os direitos reservados