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Vânia de la Fuente-Núñez : “Um mundo para todas as idades é possível e o tempo para o criar é agora”

Vânia de la Fuente-Núñez, médica e especialista em saúde pública, desenvolve o seu trabalho, na Organização Mundial de Saúde, na unidade do Envelhecimento Saudável e Alterações Demográficas.

É uma das grandes investigadoras sobre o idadismo, sendo a principal autora do primeiro Relatório Global do Idadismo e coordenadora da Campanha Global contra o Idadismo liderada pela OMS. É também impulsionadora da capacitação dos países e regiões para as questões do envelhecimento. Nesta qualidade, liderou a implementação do primeiro programa de Envelhecimento Saudável, do qual ainda é responsável.

Com formação em Medicina, Filosofia, Políticas e Economia da Saúde, Antropologia Social e Cultural, é um dos grandes rostos e vozes da OMS na área do envelhecimento e idadismo.

Em nome da Organização Mundial de Saúde, concedeu-nos uma entrevista exclusiva, onde deixa uma mensagem especial para todos os portugueses — sobre a urgência de todos nos unirmos na construção de um mundo para todas as idades.


O idadismo refere-se aos estereótipos (como pensamos), preconceitos (como sentimos) e discriminação (como agimos) em relação aos outros ou a nós próprios com base no fator idade. É uma discriminação real, tão grave como o sexismo ou racismo, contudo, é socialmente aceite pela sociedade, ou em casos mais extremos é negada a sua existência.

Porque é que uma discriminação como o idadismo que afeta todos os seres humanos, sendo que envelhecer faz parte da condição humana, continua a ser uma discriminação menor que só diz respeito a “eles”, os velhos?

Uma das razões pelas quais algumas pessoas pensam que o idadismo apenas afeta as pessoas mais velhas é devido ao facto do termo idadismo ser frequentemente utilizado apenas para descrever preconceitos contra as populações mais velhas.

É importante esclarecer, mais do que nunca, que o idadismo afeta cada um de nós. O idadismo não se manifesta apenas quando somos mais velhos; manifesta-se ao longo de todo o nosso ciclo de vida. Por exemplo, no mercado de trabalho, verificamos que são sobretudo as pessoas mais jovens e as mais velhas que enfrentam a discriminação com base no fator idade.

Os mais jovens tendem a ser os mais afetados pelo idadismo em termos de salários e benefícios. Isto significa que, para o mesmo emprego, podemos receber um salário mais baixo quando somos mais novos em comparação com os colegas mais velhos. E quando somos mais velhos, podem-nos ser negadas oportunidades de emprego ou promoções. Isto é apenas um exemplo em matéria de emprego, mas vemos manifestações de discriminação etária em muitos outros setores e esferas da nossa vida.

Em termos de prevalência, sabemos atualmente que 1 em cada 2 pessoas é idadista contra os mais velhos, e embora não tenhamos números globais relativos ao idadismo contra os mais jovens, sabemos que, na Europa, os mais jovens denunciam mais o idadismo do que os outros grupos etários.

E, apesar destes números, o idadismo continua a ser socialmente aceite e raramente desafiado. Ainda há muito trabalho a fazer, mas estamos a começar a ver sementes de mudança, e isto é ao mesmo tempo entusiasmante e muito promissor.

Após o lançamento do primeiro Relatório Global sobre o Idadismo, em março de 2021, pela OMS, no qual a Vânia é uma das autoras principais, pode-se dizer que existe um antes e um depois no combate ao idadismo?

Os relatórios globais são eficazes para galvanizar a atenção e impulsionar uma tomada de ação perante um problema. A este respeito, o primeiro Relatório Global sobre o Idadismo tem ajudado a colocar esta questão no centro das atenções.

Resume as melhores evidências sobre a natureza, a escala, os impactos e os fatores determinantes do idadismo, e as estratégias mais eficazes para o reduzir. Fornece recomendações para diferentes grupos de stakeholders — desde governos ao sector privado ou organizações da sociedade civil, oferecendo uma oportunidade de envolver um grande número de atores, e orientar ações concretas para abordar a discriminação idadista.

Isto contribui para o crescimento de uma coligação global de stakeholders que fornecerá a massa crítica necessária para determinar a mudança transformadora na criação de um mundo para todas as idades.

Paralelamente, ao Relatório, foi lançada uma Campanha Global Contra o Idadismo com diversos recursos gratuitos.

Já conseguem medir o alcance destas iniciativas?

A visão da “Campanha Global de Combate Contra o Idadismo” é um mundo para todas as idades. Todas as pessoas devem ter a oportunidade de viver neste mundo.

Os recursos que criámos estão na plataforma e servem para ajudar a tomar medidas contra o idadismo e a avançar em direção a esta visão. Estes recursos podem ajudar na aprendizagem sobre o idadismo; liderar eventos para sensibilizar a comunidade; iniciar conversas com a família e amigos, com colegas e empregadores, com estudantes; e muito mais.

Fornecemos estas ferramentas num toolkit, que evoluirá e melhorará com o tempo, por isso, quando as utilizarem, por favor, partilhem connosco o vosso feedback para que possamos continuar a acrescentar novos recursos. O toolkit está disponível em várias línguas e sabemos que já foi utilizado em muitas partes do mundo, desde o México à Nigéria ou França.

Sabemos também que há grandes iniciativas em curso em diferentes partes do mundo e que mais virão certamente.

Estamos a recolher informação sobre estes esforços através da Plataforma para a Década do Envelhecimento Saudável. Encorajamos todos os que por aí andam a trabalhar na temática do idadismo a partilhar o vosso trabalho, para que possamos aprender juntos e continuar a crescer como um movimento.

Qual é a natureza do idadismo, onde se manifesta e o seu impacto concreto?

O idadismo está em todo o lado. Vemo-lo nas nossas instituições, nas nossas relações e também dentro de nós próprios.

O idadismo institucional é visto, por exemplo, nos cuidados de saúde onde a nossa idade pode ser utilizada para determinar se temos ou não acesso a certos tratamentos e se podemos participar em ensaios clínicos que serão utilizados para desenvolver novos medicamentos e terapias. Vemo-lo também em muitos outros contextos, incluindo o local de trabalho, no sistema jurídico e nos meios de comunicação social.

O idadismo também está presente nas nossas relações uns com os outros. As pessoas exercem uma atitude paternalista ou ignoram os outros apenas porque são pessoas mais velhas ou mais novas; insultam-nas ou impedem-nas de tomar decisões por si próprias.

E podemos, em última análise, dirigir o idadismo contra nós próprios. Isto acontece quando internalizamos os estereótipos etários que são comuns na nossa cultura e começamos a aplicá-los a nós próprios, limitando o que fazemos ou não fazemos.

Em termos do seu impacto, vemos que o idadismo é altamente prejudicial para a nossa saúde e bem-estar quando somos mais velhos. Está associado a uma morte precoce, bem como a uma saúde física e mental mais pobre, reduzindo a nossa qualidade de vida.

A crise pandémica durante a primeira vaga expôs o idadismo, especialmente, contra as pessoas mais velhas, o principal grupo de risco, de uma forma altamente gritante, na sociedade e em lares da terceira idade.

Situações de preconceito, negligência, abandono, medidas extremas de isolamento e segurança, entre outras, aconteceram em todo o mundo, em tempo real. A OMS teve ou tem uma estratégia de ação perante estas situações flagrantes de violação dos direitos humanos?

A OMS desempenha um papel fundamental para que os países possam abordar e combater o idadismo. Isto envolve a promoção de uma compreensão do idadismo, para que cada país possa identificar onde o idadismo se manifesta de forma mais aguda no seu contexto, e depois orientar a implementação de estratégias para o abordar.

A pandemia da COVID-19 tornou visível o que muitos não viam antes: o flagrante idadismo que existe nas nossas sociedades. Tenho esperança de que sirva de chamada de atenção e que estimule a ação. As sociedades não podem continuar a olhar para o lado.

O idadismo é uma questão grave de direitos humanos e de saúde pública e precisa de ser tratado como tal.

O que podemos fazer para combater o idadismo; quais são as estratégias mais eficazes?

Tenho o prazer de dizer que, pela primeira vez, sabemos o que funciona quando abordamos a problemática do idadismo. Temos de nos concentrar em três estratégias. Primeiro, políticas públicas e legislação, que podem ajudar a abordar a discriminação e desigualdade com base na idade e a proteger os nossos direitos humanos. Não devemos enfrentar barreiras com base na nossa idade e as políticas e leis nacionais e internacionais podem assegurar que tais barreiras sejam removidas. Devem assegurar que não enfrentamos discriminação em nenhuma esfera da nossa vida, seja no emprego, no acesso aos serviços, no sistema jurídico, etc.

Em segundo lugar, podemos implementar atividades educativas para ajudar a dissipar conceções erradas sobre o envelhecimento e diferentes grupos etários, e para aumentar a empatia. Podem ser incluídas em todos os tipos e níveis de educação. Os exemplos incluem cursos ou workshops que transmitem informação, conhecimentos e competências, bem como atividades como role-playing, simulação e realidade virtual.

Em terceiro lugar, podemos apoiar intervenções intergeracionais, que reúnem pessoas mais velhas e mais novas, diferentes grupos etários, em torno de uma atividade comum, como o canto, a jardinagem, a pintura, etc. Estas intervenções podem contribuir para a compreensão mútua e cooperação entre pessoas de diferentes idades.

Recentemente a Pantene Portugal uniu-se à Cabelos Brancos na luta contra o idadismo. Por cada produto da gama Hair Biology Menopausa comprado, a Pantene, comprometeu-se a doar um euro à Associação Cabelos Brancos, para apoiar o nosso trabalho na luta contra o idadismo. Esta campanha da Pantene que é efetivamente pioneira e visionária a nível mundial, conseguiu angariar 10 mil euros para nos apoiar no desenvolvimento de ações educativas sobre o idadismo.

Como é que podemos reforçar a necessidade premente de as marcas apoiarem organizações sociais que trabalham no terreno contra o idadismo? Que esta causa é tão importante como apoiar causas ligadas à igualdade de género, alterações climática, pobreza e exclusão social?

O sector privado desempenha um papel crucial na mudança da narrativa em torno da idade e do envelhecimento.

Convencer marcas e empresas a juntarem-se ao movimento para criar um mundo para todas as idades requer torná-las conscientes das oportunidades que estão a perder.

As populações estão a envelhecer, criando oportunidades de mercado sem precedentes que muitas empresas não estão a conseguir aproveitar devido a pressupostos idadistas. A criação de um mundo para todas as idades ajuda as sociedades a tornarem-se menos idadistas e também promove o desenvolvimento económico. 

Com o apoio da Pantene, também estamos a desenvolver o projeto Histórias da Menopausa que pretende descomplicar a conversa científica e combater os estigmas desta etapa normal na sociedade feminina, onde o sexismo e idadismo se intersecionam.

Estamos a compilar vários dados e testemunhos de mulheres sobre esta temática. As informações que estamos a recolher revelam mais uma vez que a chegada da menopausa está muitas vezes associada à perda de autoestima e declínio. Ainda vivemos numa sociedade onde a mulher não tem direito a envelhecer. Quais as melhores medidas, quer a nível pessoal ou institucional, para combater o idadismo de género?

O termo “idadismo de género” é utilizado para ilustrar as diferenças de discriminação entre homens e mulheres em função da idade, com as mulheres mais velhas a suportarem o peso desta forma intersecional de discriminação.

Mulheres em todo o mundo tendem a estar numa situação de dupla ameaça, onde as normas patriarcais existentes e a preocupação das sociedades com a juventude resultam numa deterioração mais rápida do estatuto das mulheres mais velhas em comparação com a dos homens.

Neste contexto, a menopausa permanece largamente invisível e ignorada, o que nega toda uma transição na vida das mulheres, e que resulta numa falta de investigação, inovação, serviços e informação adequados.

O idadismo de género não só resulta em diferenças de estatuto e numa maior pressão exercida sobre as mulheres para esconder os sinais do envelhecimento, mas também em práticas discriminatórias. Por exemplo, nos cuidados de saúde, vemos disparidades em termos de acesso das mulheres idosas a cuidados preventivos e tratamentos em comparação com homens idosos. No emprego, o idadismo de género afeta tanto as mulheres mais jovens como as mais velhas em termos das suas oportunidades.

Outra forma de interseção entre o idadismo e o sexismo (dupla discriminação) manifesta-se através de acusações de feitiçaria. Em algumas partes do mundo, estas acusações são comuns, sendo as mulheres mais velhas perseguidas e acusadas de causar má sorte, doença ou morte.

A OMS e ONU – lançaram a Década do Envelhecimento Saudável 2020-2030. Em que consiste esta estratégia e quais as principais áreas de intervenção?

A Década do Envelhecimento Saudável da ONU (2021-2030) é uma colaboração global para melhorar a vida das pessoas mais velhas, das suas famílias, e das comunidades em que vivem. Inclui um plano para 10 anos de ação concertada em 4 áreas: combate ao idadismo, ambientes amigáveis para as pessoas mais velhas, cuidados integrados e cuidados a longo prazo.

Como se vê, a primeira área de ação da Década é precisamente o combate ao idadismo: a mudança na forma como todos nós pensamos, sentimos e agimos em relação à idade e ao envelhecimento. Os países estão plenamente conscientes da necessidade de se abordar esta questão insidiosa, como forma de obtermos quaisquer progressos durante esta Década.

A segunda área de intervenção é a criação de ambientes amigáveis para as pessoas mais velhas. Isto significa criar comunidades que nos permitam envelhecer em segurança no lugar certo, continuar a crescer pessoalmente, ser incluídos e contribuir. Para tal, precisamos de remover barreiras físicas e sociais e implementar políticas, sistemas, serviços e tecnologias que permitam às pessoas continuar a ser e a fazer aquilo que valorizam.

A terceira área de ação da Década centra-se na prestação de cuidados integrados centrados na pessoa e em serviços de saúde primários que respondam às necessidades das pessoas idosas. A implementação de cuidados de saúde primários centrados na pessoa é crucial, uma vez que pode melhorar o acesso da comunidade aos cuidados, e a coordenação entre serviços e prestadores, reforçando, em última análise, a capacidade física e mental dos adultos mais velhos.

Quando as pessoas sofrem uma diminuição significativa da sua capacidade, o acesso a cuidados de longa duração de qualidade é essencial para manter a sua capacidade funcional, consistente com os seus direitos humanos básicos, liberdades fundamentais e dignidade.

E, por último, mas não menos importante, a Década centra-se em proporcionar o acesso aos cuidados de saúde a longo prazo às pessoas idosas que deles necessitam.

Por último, em nome da OMS, gostaríamos que partilhasse uma mensagem dirigida aos portugueses de todas as idades, sobre a necessidade fulcral de termos um papel ativo no combate global contra o idadismo…

Um mundo para todas as idades é possível e o tempo para o criar é agora.

Hoje o idadismo está a afectá-lo a si e aos seus entes queridos. Amanhã continuará a afectar-vos e aos vossos entes queridos. Eliminá-lo exige que mudemos; que as nossas instituições mudem.

Todos precisamos de desafiar o idadismo quando o vemos, incluindo os estereótipos e preconceitos que nós próprios podemos conter. As nossas vozes são mais importantes do que nunca e temos o poder de mudar a narrativa sobre a idade e o envelhecimento. Sejam parte da mudança. Juntem-se ao movimento para criar #AWorld4AllAges.


Originária de Espanha, a Dra. Vânia de la Fuente-Núñez gere a Campanha Global de Combate ao Idadismo na OMS, e é a principal autora do primeiro Relatório Global da OMS sobre o Idadismo (2021). É também impulsionadora da capacitação dos países e regiões para as questões do envelhecimento. Nesta qualidade, liderou a implementação do primeiro Programa de Envelhecimento Saudável, do qual ainda é responsável.

A Dra. Vânia é médica de formação e integra a Organização Mundial de Saúde, desde 2014, na qual começou a desenvolver funções na componente de orientação ética no contexto da epidemia do Ébola e a apoiar o Secretariado do Comité de Ética e Investigação da OMS. Contribuiu depois para o lançamento do Observatório Global de Investigação e Desenvolvimento da Saúde. Antes do seu trabalho na OMS, trabalhou com várias ONG e institutos de investigação em países de alto e baixo rendimento, incluindo Espanha, Senegal, e a Gâmbia. Vânia é doutorada pela Universidade de Santiago de Compostela; com um mestrado em Filosofia, Política e Economia da Saúde pelo University College London; e está concluir uma licenciatura em Antropologia Social e Cultural.


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