Simplesmente Lena
Lena d’Água, tem 58 anos, é um nome incontornável do panorama artístico de Portugal. Nasceu na sua casa em Benfica (Lisboa) tendo na altura um pai famoso, o grande futebolista José Águas, mas fama é algo que nunca desejou possuir. Cresceu feliz no seu bairro, tornou-se adolescente numa altura de grandes mudanças, sociais e políticas, assistiu à grande revolução do 25 de abril, com um sentimento misto de incredulidade e encantamento. Soube logo que esta data iria ficar na história do país. Diz que nunca sonhou ser cantora, que foi um feliz acaso (nós diríamos obra do destino) que a levou a um rumo nunca sonhado. É das primeiras artistas femininas portuguesas no universo pop rock – na década de 80 torna-se na “namoradinha de Portugal”. Tem uma mistura explosiva, de talento, beleza, liberdade, inocência e rebeldia. Hipnotiza tudo e todos.
Cruza-se com a heroína, decide experimentar e fica adicta. São anos duros, com muitas tentativas de libertação e recaídas, com muitas perdas pessoais, com muitas provações, mas a pureza de Lena permanece intacta. Consegue superar esta dependência e tenta perseguir um sonho de sempre: viver no campo.
Atualmente vive num local mágico a quase uma hora de Lisboa. Mora no “Largo da Alegria”. Mais uma vez o acaso e o destino entram em competição. Vive com os seus nove animais, e com 58 anos, não sente nem pensa muito no envelhecimento. Continua a ser aquilo que sempre foi, evoluindo de acordo com o propósito da vida, crescer enquanto pessoa e artista.
Cantou para nós numa voz cristalina: diz que a sua voz não envelheceu porque esta é o espelho da sua alma… Ao ouvi-la sabemos que estamos perante a presença de alguém com um carisma e talento inigualável. Envelhecer no meio artístico como mulher ainda é um desafio difícil…. Lena, a musa dos anos 80, não quer as luzes da ribalta, só quer conseguir compor novas canções. E nós só queremos, que a Lena e as suas canções, sejam devolvidas ao lugar que sempre lhes pertenceu: o palco…
Como foi a tua infância?
Foi espetacular! A minha irmã nasceu no ano seguinte e dois anos depois nasce o Rui. O bairro dos artistas, em Benfica, onde vivíamos, era feito de pequenas vivendas, com muitas crianças. Não havia praticamente prédios, brincávamos na rua, aos países, ao mata, aos índios e aos cowboys. Era como viver numa aldeia cheia de crianças.
O bairro de Santa Cruz era como se fosse uma ilha. Guardo amizades dessa altura.
Convivias com pessoas mais velhas?
Sim, quase todas as casas tinham avós. A nossa avó também vivia connosco. A família era o nosso suporte.
E a tua adolescência? Eras conhecida por seres excêntrica…
Nós erámos conhecidos por sermos os filhos do Águas. No liceu não podíamos usar calças nem minissaias. Uma vez anunciaram que podíamos usar calças, mas com saia por cima. Foi a risota total. Lembro-me de ter duas colãs muito coloridas, que davam muito nas vistas.
O que querias ser quando fosses grande?
Queria ser astronauta. Foi na altura da ida à lua. Todos queríamos ser astronautas.
Não sabia exatamente o que queria seguir… Gostava de línguas, de matemática, de filosofia. Queria estudar o mais possível e compreender o mais possível, não queria escolher.
Fui para a universidade de economia, porque queria depois seguir sociologia, antropologia, tudo o que fosse “logia”[risos]. Isto em 1973. Uma vez arranjei um emprego e despediram-me porque acharam que eu era comunista!
Ainda fiz uma disciplina – matemática – mas depois aparece o 25 de abril. Nesse dia tinha matemática às oito da manhã, no ISCTE. Quando cheguei à faculdade estava lá um estudante, um alentejano, muito excitado, que dizia: ocuparam o rato clube, ocuparam o rato clube! Primeiro que eu percebesse que se tratava do rádio clube!
Um deles tinha carro e fomos ver o que se passava, as ruas fechadas, as chaimites. Eu repetia, 25 de abril, esta data vai ficar para sempre na história.
Acabei por não fazer a faculdade, não havia aulas! Só havia passagens administrativas. O pessoal ia lá jogar xadrez e damas…. Enquanto lá fora na rua os dias eram de um encantamento inexplicável.
Como é que surge a música no meio disso tudo?
A música já tinha surgido. Quando o meu pai saía de Portugal para jogar, com o Benfica ou com a seleção, trazia discos muito bons de orquestras, de jazz… A nossa casa era muito musical. Mas como eu era muito tímida, nunca me passou pela cabeça seguir a carreira da música.
Já tocava guitarra desde os 14 de anos. Uma tarde quando ia para a catequese (também dava catequese!), emocionei-me profundamente quando ouvi um rapaz lá do bairro a tocar o “Lay Lady Lay” do Bob Dylan. Então pedi uma viola ao meu pai para poder aprender. Era atenta, boa aluna, sabia dos Beatles, dos hippies e da Yoko Ono. Fazíamos umas reuniões onde discutíamos política, os Kennedy (ainda sem percebermos grande coisa de política!)
No 25 de abril já eu tocava imensas canções, e a faculdade já não era para mim, porque eu queria estudar e não havia aulas.
Entrei nesse ano numa peça, “A viagem à Íris”, a fazer de estátua do jardim. Foi a minha estreia em palco como actriz. Logo depois em 75 conheci o Ramiro, e foi amor à primeira vista. Casámos e pouco depois nasceu a Sara. Eu tinha 19 anos. Agora parece pouco, mas eu já me sentia uma mulher feita. E no fundo pouco muda, só o corpo muda com a idade. Entrei nos Beatnicks em 76, como segunda vocalista, o Ramiro (Martins) tocava viola-baixo., a Sara tinha cinco meses.
Como na faculdade não havia aulas, e antes mesmo da Sara nascer, fiz admissão ao Magistério Primário, no curso piloto experimental, foi lindo. Tínhamos música, movimento e drama (era a minha especialidade) e também educação especial e psicopedagogia e sociologia. Adoro miúdos e tenho uma relação muito fácil com eles. Mas eu queria sobretudo aprender a ser mãe, e nunca cheguei a exercer a profissão de professora.
E então dedicaste-te à música?
Sim, quando cantava nos Beatnicks comecei a ser ouvida por pessoas ligadas à música, e começaram a chamar-me para trabalhos de estúdio, como coralista. Fiz coros em discos do Marco Paulo, do António Calvário, do Carlos do Carmo. Participei numa canção vencedora do Festival da Canção, e fui a Paris. Comecei a ganhar algum dinheiro na publicidade, a cantar jingles, e foi então que conheci o Luís Pedro Fonseca e o Zé da Ponte, com quem fundei a Salada de Frutas. Pouco mais de dois anos passados ficamos conhecidos do grande público com um jingle que tinha sido recusado por um cliente e que passou a canção, o Robot. Foi assim que isto tudo começou.
O Luís Pedro foi a pessoa fulcral na minha carreira, compositor da quase totalidade das minhas canções mais famosas. De tal maneira me conhecia que muitas pessoas ficavam convencidas de que as canções tinham sido escritas por mim mesma, porque as histórias eram verdadeiras.
Foste uma lufada de ar fresco no panorama artístico na altura. Não haviam muitas mulheres a cantar rock na altura.
Fui a primeira vocalista numa banda de pop-rock em Portugal, sou a mais antiga. Pouco depois aparece a Adelaide Ferreira e só mais tarde a Xana dos Rádio Macau…
Arrependes-te de alguma coisa?
Sim, de ter experimentado fumar heroína, com um namorado. Foi difícil, mas consegui sair, e já lá vão 17 anos que tudo isso terminou, no final dos anos 90. Há pouco tempo abri um frasco de açúcar amarelo e veio-me o cheiro à heroína. Ri-me tanto, aqui sozinha, afinal tinha andado a fumar açúcar amarelo!
Tiveste um período de grande reconhecimento público e agora tens menos exposição...
Eu nunca ganhei muito pelo reconhecimento. Ser reconhecido é bom quando temos trabalho e nos chamam para fazer concertos. Vivo de uma forma mais franciscana, desde que não me falte ração para os animais está tudo bem. Nunca tive outro trabalho. Também nunca corri atrás da fortuna, não é para isso que eu cá estou.
Vieste viver para o campo…
Desde miúda sonhava um dia vir morar para o campo. Vocês nem imaginam como é dormir com o silêncio total. Foi uma decisão amadurecida ao longo da vida, de que não me arrependo, pelo contrário.
Envelhece-se melhor no campo?
Eu acho que sim. Aqui sabe-se sempre quando alguém morre. Toca o sino. Quando é uma mulher as badaladas são duas, quando é um homem são três. São raras as pessoas que morrem antes dos noventa anos.
Aqui na aldeia não se sofre tanto de solidão como na cidade. Muitos vivem sozinhos, mas há outra proximidade. Ninguém está esquecido. Na cidade já não é assim.
Tenho saudades de ir ao Hot Clube, mas estou ligada aos meus amigos pela net.
E quando eras mais nova, pensavas na velhice?
Não, lembro-me do meu pai dizer: põe dinheiro de parte! Com 30 anos lá pensava em pôr dinheiro de parte! Nunca tive jóias nem grandes carros. Recusei-me sempre a fazer playbacks, insisti sempre em cantar com os músicos, por isso não ganhei mais dinheiro.
O que é que mete mais medo no envelhecimento?
É ficar sem poder andar. É ficar dependente, ainda mais com esta tropa toda (risos, refere-se aos seus nove animais), não posso morrer antes deles… mas já me disseram que eu vou viver muitos anos!
Tens consciência que és uma artista pop rock com quase com 60 anos?
Eu sou acima de tudo uma cantora, mais do que pop ou rock ou jazz. É sem dúvida mais difícil envelhecer no mundo artístico como mulher. Costumo dizer que para eu ser a mais velha só falta a Simone. Das mais velhas há sempre uma que fica. Antes era a Amália, depois a Simone, um dia hei-de ser eu…
Como te vês com 80 anos?
Já sem fumar! Continuarei a viver no campo. Quero viver mais por causa do meu neto e da minha filha. Mas por dentro não envelheci. E as pessoas dizem que a minha voz mantém a juventude. A voz é o espelho da alma, é por isso.
Além do mais posso ensinar muitas coisas.
Sentes que a nossa sociedade glorifica a juventude e desvaloriza as pessoas mais velhas?
Com certeza. Sobretudo pelas artistas mais velhas… Mas não tarda vamos ser a maioria, alguma coisa há-de mudar entretanto…
Um sonho…
Tenho exatamente a vida que eu quero. O meu sonho é compor canções, é o que me falta fazer. Conseguir ultrapassar a barreira auto-crítica que criei para poder compor canções.
Para terminarmos, podemos ouvir uma canção?