
Para o ano é que é…
Dia 24 de dezembro, 6 horas da manhã de um ano qualquer.
Acordo mas não abro os olhos, fico a ouvir a minha respiração, lenta, combalida, sem paixão.
Mexo-me nesta cama que o corpo ainda não reconhece. Tento cheirar os lençóis à procura de um conforto pueril.
Chega a primeira auxiliar, de comprimidos coloridos a combinar com o disfarce de natal que insiste em usar. Fala muito alto, chama-me de avó e fere-me o ouvido com as suas frases infantis.
“Ela é simpática, a mãe tem muita sorte”, recordo o meu filho dizer.
Sorte, sorte, sorte, como um martelo dentro de mim, ao lembrar o dia em que aqui me deixaste. Uma vida, reduzida a um quarto.
“Aqui tem tudo o que precisa mãe”. O que sabes de mim? Algum dia me quiseste conhecer?
Onde falhei? No amor?
Tento levantar-me, devagar, sem vontade de ir. Quero fechar os olhos e ficar só.
Lembro-me que a solidão me metia medo e sorrio da minha própria ignorância. Que saudades de estar só, de me bastar a mim mesma.
“Hoje vem cá o seu filho buscá-la para a ceia de Natal”, grita a auxiliar.
Veste-me a melhor roupa e mete-me uma colónia antiga, talvez de alguém que partiu.
Passo a manhã a olhar para a porta. Perdoo tudo, peço absolvição por ser mal agradecida, uma vibração conhecida percorre-me.
14h30, uma chamada para mim. É o meu filho. Afinal não pode vir buscar-me, mas para o ano é que é. Digo não faz mal. Desliga ele primeiro.
Fecho os olhos e lembro a minha mãe. Uma lágrima foge e a minha mãe afaga-me, “está tudo bem meu amor”.
Autoria: Ana Caçapo, Co-fundadora da Cabelos Brancos