O senhor
Acordo em sobressalto. Abro muito os olhos e demoro a reconhecer o quarto. A Maria abraça-me e segreda-me “Está tudo bem, foi só um pesadelo….”.
Sento-me e levo as mãos à cabeça, suor e lágrimas ajudam-me a recompor.
“O que sonhaste?” Não me lembro, já passou.
Partilho o a minha vida contigo há sete anos e nunca me lembro, repito sempre.
Perguntas-me pelos meus pais, já morreram e desvio o assunto.
Não te consigo contar, uma infância cheia de dor, humilhação e sovas sem fim.
A minha mãe morreu cedo, fiquei aliviado por ela.
O meu pai…
Obrigava-me a chamá-lo de senhor. Nunca lhe vi um afeto ou um sorriso.
Humilhou-me sempre que pôde, bateu-me desde sempre.
Mal pude fugi do senhor. Nunca olhei para trás.
Mas os pesadelos nunca me deixaram esquecer. Quando mijava na minha comida e me obrigava a comer, quando me fazia repetir que sou uma merda, enquanto apagava as beatas na minha pele.
Nunca perguntei porquê. Era uma criança.
Passaram 20 anos, e agora regressas.
Ligam-me do lar onde te lembraste agora de mim e perguntam se sou o teu filho.
Digo que o senhor não tem filhos. Insistem, “ele está a morrer, só chama por si”.
Repito que não voltem a ligar, nunca mais. Mas insistem, “tenha piedade”.
Desligo e sinto-me a enlouquecer. Piedade, piedade, piedade, pelo senhor.
Ligam-me de novo. Estou calmo agora, aliviado, “não me liguem sequer quando ele morrer”.
Autoria: Ana Caçapo, Co-fundadora da Cabelos Brancos
“Demons” Ilustração de Arkadiusz Jankowski