O carteiro toca sempre (e grita pelo menos) duas vezes
Rua do Grémio Lusitano, 11:30 da manhã. É sexta-feira e não existem muitos sinais do que por ali aconteceu na noite passada e se prolongou até poucas horas antes da minha passagem. Encontro as ruas relativamente limpas. Avisto dois copos de plástico usados no chão, mas mais nada.
Se percorrermos as ruas dos bares do Bairro Alto durante o dia, não nos apercebemos nem de metade da oferta que existe por ali. As portas fechadas confundem-se com tantas outras portas dos edifícios que ali estão. Algumas placas identificam os estabelecimentos, mas à luz do dia nem damos por elas.
– Correeeio!- grita o carteiro com o carrinho cheio de correspondência. Vai de porta em porta e espera pacientemente o acesso ao interior dos edifícios.
Recebo uma chamada de um hóspede e fico a poucos metros do carteiro, durante uns minutos, a dar-lhe informações. Ficamos os dois imóveis. Eu vou explicando ao meu hóspede que tem de mudar da linha vermelha para a verde, para que possa sair na estação de metro da Baixa-Chiado. O carteiro olha para cima, em direcção às janelas, com esperança que lhe abram a porta.
– Correeeio! – grita mais uma vez.
Termino a chamada e digo-lhe: – deve demorar muito tempo a entregar o correio, assim.
– Oh, nem me diga nada. Isto todos os dia é uma luta.
– Pois, só consegue entregar correio se aceder ao interior do prédio, mas durante o dia deve ser complicado, não encontrará muita gente em casa…
– Não, não, eles estão em casa! Mas não ouvem! São todos surdos! Ficaram assim com a idade e com o barulho dos bares! Eu toco, eu grito, mas nada. Até já sei o tempo de espera para cada prédio!
– Então?
– Aqui tenho de gritar “correio” umas três ou quatro vezes até alguém abrir a porta. Ali em frente só toco, mas tenho de tocar 3 vezes senão a senhora do último andar não me abre a porta. Ali, gritar “correio”não me serve de nada. Ela só ouve sons electrónicos – e ri.
– Correeeio! – mais uma vez. E a porta abre-se.
– Vê? Isto são muitos anos nisto. Fala a voz da experiência – ri novamente.
Sigo para a Rua da Atalaia e encontro um menino que não terá mais de três anos, a correr em círculos na estrada, vigiado pela avó.
– Olha que vais cair, ficas tonto! – diz a avó encostada à parede, com o braço direito levantado, e a mão junto à testa a fazer de pala.
O sol está alto e eu viro à esquerda em direcção à Rua da Rosa, mas ainda a tempo de ouvir mais um “correeeio!”.
À noite as ruas voltarão à outra vida. O menino que agora brinca no meio da estrada estará a dormir, quem sabe ali perto, e o carteiro terá cumprido mais um dia de trabalho. Os bares encher-se-ão de clientes que ficam nas ruas a beber e a conversar até tarde, ao som da música alta, sem se aperceberem que nos andares de cima vivem pessoas, ensurdecidas não pela música mas pela vida, e que anseiam por notícias, ainda que demorem a abrir a porta ao carteiro. Porque essa espera, delas e do carteiro, talvez seja a única emoção de antecipação que lhes resta.
Ana Godinho de Vasconcelos