Luísa, a voz do Candal
Luísa de Jesus de Campos, 84 anos, é um rosto e símbolo do Portugal esquecido. Vive na aldeia do Candal, S. Pedro do Sul – onde nasceu e sempre viveu. Este lugar mágico fica perdido nas encostas da Serra da Arada e é adornado por leiras em socalcos e riachos e ribeiros que serpenteiam a paisagem da montanha. Aqui a natureza aparece bruta e misteriosa: o céu é mais azul, as estrelas iluminam a noite, o ar é puro e o vento assobia. O silêncio tem a cadência que nos transmite calma e contemplação. É o paraíso.
O sorriso sereno e voz doce da Luísa têm poderes nitidamente encantatórios. A sua presença está impregnada por uma aura ancestral: sentimos que estamos perante uma das últimas representantes de um tempo repleto de costumes e tradições, memórias e canções, sabedoria e afetos.
“Comecei a trabalhar com 7 anos no minério, depois fui para a floresta. Passei muita fome. Ia a Manhouce (aldeia vizinha) buscar a farinha para ajudar a minha mãe a fazer a broa de milho.
Casei-me com 17 anos. No dia do meu casamento fui trabalhar com outra rapariga para o minério, com uma sardinha embrulhada num papel e um bocadinho de broa numa saca. O meu marido foi serrar e só nos encontrámos à noite. Era uma casa de miséria… nem tínhamos mantas para nos aquecermos na cama.
A minha mãe cegou, o meu marido esteve 18 anos em casa numa cadeira de rodas, e eu tive uma trombose. Mas consegui recuperar e cuidei sempre deles. Até ao fim.
Enviuvei há 11 anos. Tenho dois filhos, 4 netos e 5 bisnetos.
Trabalhei no minério, fiz terra de renda, andei por aí… nunca parei de trabalhar.”
Viver e envelhecer longe dos centros urbanos é uma prova de força e resiliência. O interior rural é um país à parte, uma realidade longínqua que muitos desconhecem e valorizam como património humano, cultural e paisagístico imprescindível para a preservação da identidade portuguesa.
A vida no Candal sempre foi dura, mas nos últimos anos os efeitos da austeridade deixaram marcas profundas nas suas gentes e continuidade.
“Os meus filhos estão os dois emigrados na França. Tiveram de partir em busca de uma vida melhor. A aldeia está cada vez mais envelhecida e abandonada. Até já fecharam a escola primária e não temos transportes. Cada vez que temos de ir ao centro de saúde temos de alugar um táxi.”
Apesar de todas as adversidades existem pequenos sinais de que este lugar pode ter um futuro: Joana Azevedo, 36 anos, é um exemplo vivo deste renascimento. Mudou-se para o Candal há cinco anos com a sua filha Madalena e aqui montou o seu ateliê de restauro de arte sacra em talha dourada.
“Tenho duas amigas novas, a Joana e a Madalena. No ano passado tive um problema de saúde que me deixou quase cega durante um mês. Quem me valeu nessa altura foi a Joana… Nunca me vou esquecer o que ela fez por mim…”
Numa altura em que se discute a diminuição das relações/solidariedade intergeracional, temos na amizade de Luísa, Joana e Madalena, um ensinamento espontâneo sobre os valores humanos básicos de uma sociedade justa e solidária.
“Sempre adorei cantar, cantava no minério, nas ceifas, em todo o lado. Já ensinei algumas modas à Joana.”
Tem uma voz que faz lembrar um murmúrio melancólico da montanha.
Ouçam-na:
O ferreiro cheira o ferro
O carpinteiro a madeira
Cada qual na sua arte
Que eu também sou lavadeira
Eu também sou lavadeira lá no rio de Jardal
Lavei a roupa com rosas e fica-me o cheiro na mão
Fica-me o cheiro na mão e fica-me o cheiro no fato
Se eu morrer e tu ficares tira amor o meu retrato
Tira amor o meu retrato na palma da tua mão
Se eu morrer e tu ficares amor do meu coração
“Quero continuar a trabalhar com direito ao descanso e umas festas de vez em quando.”
Viver no Candal é um acto de simplicidade, um modo de vida que tem forma na partilha e apoio comunitário. Luísa e Candal são um só, e estão à vossa espera. Ponham-se a caminho, é uma viagem longa, com muitas curvas, mas quando lá estiverem vão perceber uma lição do passado que pode dar significado ao vosso presente.