Ema de Abreu e Sara Morais Pinto
Avó e neta, Ema de 93 anos, Sara de 43, têm uma relação cúmplice e descontraída.
Ema tem o sonho dos palcos, queria e quer ser actriz, Sara quando era pequenina idealizava ser uma árvore. Ambas têm um percurso fascinante na reconstrução do que é ser mulher, a luta pela independência e nunca desistir do que faz o coração bater mais alto.
Têm uma ligação afetiva com o mundo das artes, gostam de explorar a criatividade, de novas ideias, de experimentar e fazer acontecer.
Encarar a morte pintada é uma das exigências de Ema que só tem pretendentes mais novos e recusa-se a encolher a idade. Diz sempre que tem mais um ano ou dois para se habituar.
Sara sente-se inspirada pela avó e confirma que além dos laços familiares são genuinamente amigas.
Esta conversa decorreu na casa de Ema, situada no coração de Lisboa, onde se respira a história viva desta família.
Ema e Sara são o arquétipo de uma valsa feminina.
Delicadas e fortes, simplesmente irresistíveis.
Qual é a vossa naturalidade?
Sara – Eu sou de Lisboa.
Ema – Eu nasci em Oliveira de Azeméis. Fui só lá nascer, porque o meu pai queria que os filhos nascessem na terra dele. Assim, com 15 dias fui para Lisboa, porque era onde ele trabalhava. O meu avô era a pessoa mais rica lá da terra, porque tinha um centro vidreiro. Era muito bondoso e fez uma aldeia para os trabalhadores.
Qual é a vossa primeira memória juntas?
Ema – Foi uma bebé que veio e eu achei linda, foi a minha segunda neta.
Sara – Eu tenho muitas memórias da minha avó, mas aquela que me lembro sempre com muita graça, já eu tinha 10 ou 11 anos e parti o braço na escola. A minha mãe foi ter comigo ao hospital e de repente estava a ser tratada e ouço: “Deixem-me passar, deixem-me passar!†E ela entrou porque tinha de estar ao pé de mim e saber como é que eu estava. Na altura não deixavam entrar ninguém, mas a minha avó convenceu o segurança!
Ema – Eu consigo sempre fazer aquilo que quero! Às vezes até estou a fazer pequenas coisas e não me saem bem e eu penso: Nem que esteja aqui até à meia-noite, vai sair como eu quero! Sou teimosa!
Como foi a vossa infância?
Ema – A minha infância foi muito boa, aqui em Lisboa. Morei com o meu pai até ele morrer e depois fui viver com um tio, que não tinha filhos, e me criou a mim e à minha irmã. Tinha sete anos quando o meu pai morreu. A minha mãe era nova e casou-se de novo e teve mais filhos, mas eu fiquei com o meu tio e a minha tia até casar.
Casei-me com 21 anos e fui avó aos 45. E depois fui bisavó, tenho 7 bisnetos. O mais pequeno tem 5 e a mais velha 18 anos. O meu marido faleceu há mais de 30 anos.
O meu tio chamava-se João Marques e era uma pessoa ligada à s artes. Todos os quadros que estão aqui foi ele que os fez. Pertencia à Sociedade Nacional de Belas Artes, era desenhador da Faculdade de Medicina, de medicina patológica. Fez muitas exposições, ganhou medalhas e tem quadros dele em museus em Espanha. E eu andava sempre com ele. Eu conhecia toda a Faculdade de Medicina, para ir para o escritório dele passava por coisas mais esquisitas… bebés dentro de frascos… carne humana, e ele desenhava aquilo tudo.
O símbolo da Brasileira (café centenário, em Lisboa) foi ele que desenhou. É um homem a pegar numa chávena de café e são as minhas mãos a tocar na chávena.
Sara – Posso falar na minha perspetiva? Era um homem intelectual, com gosto enorme para as artes e passou à minha avó o gosto de fazer, a criatividade, e também um grande incentivo de autoestima. Ele dizia sempre uma frase à minha avó: “Ema, nunca te deixes de maquilharâ€.
Ema – Aos 15 anos já me pintava e sempre usei saltos altos. Eu era a menina bonita dele.
Conheci muitos pintores, que me pintaram também. Até nas pedras das mesas do café me desenhavam.
E tu Sara, como é que foi a tua infância?
Sara – Foi uma infância comum, acho eu. Tenho uma diferença da minha irmã de 4 anos e há o divórcio dos meus pais muito cedo. Tinha 2 anos quando os meus pais se divorciam. Não é uma infância traumatizada, mas com essa questão de reajuste.
Nessa altura do divórcio vim viver uns tempos (com a minha irmã) para a casa da minha avó. A minha mãe também estava enamorada com o meu atual padrasto, e tinham uma casa pequena, e nós fomos bem deixadas com a minha avó e o meu avô. Era muito pequena mas tenho memórias de encontrar muitas coisas perigosas ligadas à minha avó, eram agulhas ou parafusos que eu encontrava no chão. A minha avó sempre costurou e era natural encontrar esses objetos.
Ema – Eu sempre costurei, mas nunca ninguém me ensinou. Nunca gostei que me ensinassem, eu fazia à minha maneira, era uma autodidata. Tenho muitos vestidos de noite e quem fazia os vestidos todos era eu. Fiz o vestido de noiva da minha neta.
Sara – Quando viemos para cá também tive de encontrar o meu espaço, éramos duas meninas e ficámos muito unidas, embora com feitios totalmente diferentes.
Entretanto, o meu padrasto constrói uma casa no Bairro Alto, uma casa sui generis. Ele era arquiteto e construiu um prédio na vertical com 3 andares, cada andar tinha as várias divisões.
Quando entro na adolescência, a minha irmã, com 20 anos, sai de casa, para casar e viver a sua vida. E quando começa a minha adolescência eu começo a viver outra vida, com muita responsabilidade incutida e muito independente.
O que queriam ser quando eram pequenas?
Sara para Ema – Eu sei, eu sei…
Ema para Sara – Então diz lá para ver se sabes!
Sara: Atriz!
Ema: Ainda hoje gostava de entrar numa peça do Filipe La Féria! Descer umas escadarias, cheia de plumas e extravagante!
Mas na altura em que era mais nova o meu tio não achava bem que eu andasse nessa vida.
O que é fizeste na tua vida, Ema?
Ema – Olha, estava em casa, não me deixavam sair sozinha, e mesmo quando comecei a namorar namorei de gargarejo. Era ele em baixo e eu à janela a falar. O que vale é que era um primeiro andar!
Eu conheci o meu marido quando fui ao cinema com a minha irmã e a minha tia.
Fora de casa não me deixavam fazer nada, fazia as minhas coisas em casa.
Sara – Naquele tempo, o meu avô era importador de tabaco e as mulheres tinham uma coisa para fazer: era serem mulheres dos maridos. Ela tinha empregadas e tinha que as orientar, que as ensinar a cozinhar.
E tinha duas filhas. Quando acontece a fatalidade do meu avô morrer, há uma mudança grande, foi também a libertação para fazer o que sempre quis.
Ema – Comecei a decorar casas, decorei a Pecuária, o gabinete do diretor do Hospital da Estrela. Fiz bolos para fora.
Já percebemos que tem muitas competências…
Ema – Eu só não faço aquilo que não quero!
Sara – No meio disto tudo, bastava haver um “ai†de uma neta que ela deixava tudo para nos ir fazer a canjinha. As nossas festas de família eram todas aqui. Chegavam a estar 60 pessoas. Desmanchava a casa toda para poderem todos aqui estar.
E Sara, o que querias ser quando fosses grande?
Sara – Quando era muito pequenina queria ser uma árvore! Olhava para as árvores e achava-as maravilhosas. Depois, mais para a frente, adorava as pessoas que trabalhavam com as máquinas registadoras. Brincava imenso aos correios. Depois gostava de ser engenheira, de construir pontes. Via todos os dias a Ponte 25 de Abril, era um fascínio ver como é que se aguentava. Ainda hoje gosto da ideia. Mas fui por outro lado. Talvez por influência do meu padrasto, que era uma pessoa muito ativa e muito presente na comunidade. Ele tinha os seus ideais de Esquerda e fazia muito trabalho voluntário.
Não sei se por influência dele, eu também, desde cedo, me envolvi na comunidade, sendo monitora de colónias de férias, por exemplo. Eu não sabia o que queria ser.
Depois tive uma professora que me influenciou muito. Era a minha professora de Sociologia do 11.º primeiro ano. E eu encontrei na Sociologia um lugar que me dava um olhar do que eu já fazia espontaneamente. Sempre estive ligada a questões do Ambiente, mas era uma coisa muito espontânea, nada desenvolvida. Tirei o curso de Sociologia e gostei imenso. Mas confesso que gostava ainda de tirar o curso de Engenharia. Gosto muito do raciocínio assertivo.
Comecei logo a trabalhar na Câmara Municipal de Lisboa, o que me deu uma experiência muito lata, desde produção de eventos, comunicação, gestão de contas. Tinha uma grande liberdade, e mudou-me de alguma forma, deixando-me esta necessidade de criar, fazer acontecer, ser empreendedora.
A minha avó sempre foi muito empreendedora, só que esta palavra não existia na altura.
Depois da Câmara tive uma experiência empresarial, de marketing, que me fez aperceber o “fun†que é comunicar as coisas que fazemos e como fazemos. Mais uma vez o planeamento e a gestão estavam a integrar-se no meu dia-a-dia.
Depois vou para a CAIS (associação de solidariedade social sem fins lucrativos com um projeto central de inclusão, oferecendo à população marginalizada um meio de reinserção pelo trabalho: A Revista CAIS), que estava num momento complicado de vida. Fui voluntária da CAIS durante um ano, organizei o ano internacional do voluntariado. Sempre com uma grande humildade para aprender, ganhei competências de gestão de projeto. Estive lá 12 anos. Fomos pioneiros na criação de negócios sociais.
Hoje faço várias coisas, aprendi a gerir tudo de uma forma mais descomplicada e descomplexada. O foco não tem de ser só numa atividade, podemos fazer diversas coisas completamente diferentes.
O que é que marca mais a vossa relação?
Ema – Falamos muito uma com a outra, ajudamo-nos sempre que é possível. Sempre nos demos muito bem.
Sentem que são verdadeiramente amigas? Ou isso só tem a ver com o facto de serem avó e neta?
Ema e Sara – Não sei…
Sara – É difícil de responder…
Ema – Somos mesmo amigas, ela ajuda-me imenso.
 E a vossa diferença de idade afasta-vos ou aproxima-vos?
Sara – Acho que não tem a ver com a idade, tem a ver com a relação de confiança. Eu admiro e respeito imenso a minha avó. Somos uma família com muitas mulheres, matriarcal. Rimo-nos muito as duas. Para mim é uma inspiração. Ela tenta nunca pesar a família.
Ema – Prefiro que me chateiem a mim do que chatear os outros.
Sara – Vive bem a vida, tem amigos dela, que não são nossos amigos. É muito requisitada, veem buscá-la e trazê-la.
Ema – Todos me acarinham.
Sara – Avó, és uma maravilha, mas tens mau feitio!
Ema – Quando me pisam os calos tenho que reagir!
 Se olhassem para trás havia alguma coisa que gostariam de mudar nas vossas vidas?
Ema – Olha, teria escolhido uma casa com elevador! Talvez mudasse mais coisas, mas estou muito contente com a minha vida e a minha idade. Sempre me dei bem com o passado.
Sara – Talvez fizesse algo a ver com Arte ou Teatro, gosto muito de coisas criativas. Mas não apagava aquilo que tenho. Gostei muita da vida até aqui, para mim a mudança é olhar para a frente.
Já se sentiram discriminadas por causa da idade?
Ema – Eu não! Tenho 93 mas não me sinto com eles.
Sara – Sim, num passado recente, numa situação de trabalho. Eu tenho idade, sou mãe de quatro filhos, e – cereja no topo do bolo – sou mulher. Há muita competitividade nas áreas em que eu tenho competência. Já fui a várias entrevistas onde me perguntam qual a composição da minha família e a reação corporal quando ouvem a resposta é clara para mim.
Pensam, apesar de estarem em diferentes estágios da vida, em como querem viver a última fase das vossas vidas?
Ema – Ir para um lar está fora de questão! Assusta-me imenso só a ideia. Quero continuar na minha casa. No fim quero ir pintada! Não penso nisso, quando morrer morri.
Sara – Eu tenho aqui uma boa referência. Gostava de ter saúde. Quero estar acompanhada. E também não quero incomodar. Do que eu conheço de apoio à terceira idade, faço uma péssima fantasia. Mas também penso que as residências de idosos sejam diferentes dos lares de idosos. Nas residências, apesar de serem muito caras, pode viver um casal. Não quero estar sozinha, quero estar acompanhada.
Vocês têm uma relação intergeracional, mas normalmente isso só acontece no contexto familiar. Como é que se pode promover isso fora da família?
Ema – Eu tenho amigos novos, sou a mais velha deles todos! O mais novo tem trintas e tais, fui ao casamento dele e tudo. Tenho facilidade em arranjar novos amigos, todos querem ser meus amigos. E tenho pretendentes! São todos mais novos do que eu!
Também não estou fechada em casa. Se não tiver nada para fazer, vou para a esplanada. Passa um, passa outro, converso, e depois regresso a casa toda contente da vida.
Sara – Tenho relações com pessoas mais velhas e mais novas e acho muito interessante essa partilha. Não sei se tem a ver com a idade, mas eu gosto de conhecer pessoas que me apresentem coisas novas ou que me ponham em causa. Tenho talvez a fantasia que as pessoas mais velhas, com a sua experiência, me façam captar coisas que nunca me tinha apercebido.
Para terminarmos… Um sonho?
Ema – O meu maior sonho era participar numa peça de teatro do Filipe La Féria. Sempre foi. Quem sabe, pode ser que um dia se realize.
Sara – Eu gostava de viajar muito.
Para onde viajarias agora?
Sara – Basta fazer as malas e ir para o aeroporto e já estou bem. Não é só o descanso. Novas pessoas, novos cheiros, tudo é um impulso para novas ideias.
Ema – Já fui a Paris sozinha. Tinha oitenta e poucos. Fiquei o tempo que me apeteceu e depois regressei.
Queríamos que pensassem sem conjunto e nos dissessem o que é para vocês uma vida sem prazos de validade.
Ema – É uma maravilha! Não sabemos quando vamos, não há prazo de validade para a vida. Há pessoas que encolhem a idade para parecerem mais novas. Eu não, digo sempre que tenho mais um ano ou dois do que tenho. É para me habituar, assim quando chegar a essa idade já estou habituada! Há uma Ema que eu conheci que viveu até aos 117 e eu quero lá chegar! Ainda quero ser trisavó!
Sara – Uma vida sem prazos de validade é sermos autónomos, gostarmos de nós e podermos fazer disparates. Viver.
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