Elmano, o ator em busca da transcendência
Elmano Sancho é ator e tem 35 anos. Quando olha para a sua infância sente-se um pouco velho, quando reflete sobre a velhice que um dia viverá incorpora o adulto jovem. É tudo uma questão de perspetiva e tempo. É natural de Paris, mas cresceu em Poçacos/Valpaços, Trás-os-Montes.
Em miúdo vivia num mundo imaginário que mais tarde descobriu não corresponder ao mundo real. Agora é um adulto com ânsias e são estas que o fazem mover e despertar.
Tem trabalhado essencialmente em Teatro e Cinema e, apesar de ter uma carreira relativamente curta, já foi nomeado sete vezes para diversos prémios. Este ano chegou o grande reconhecimento. Elmano ganhou o Prémio de Melhor Ator de Teatro atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). É exigente consigo, com o seu treino, e não consegue conceber o seu trabalho, sem luta, dedicação e esforço.
Pensa no envelhecimento como algo inevitável e misterioso. Não receia a morte, nem o esquecimento.
Elmano Sancho, é um nome de ator, nome de alguém que veio para sentir e tocar o divino, nome de quem já é eterno.
Que recordações guardas da tua infância?
Uma ligação muito grande à terra, ao campo e, ao mesmo tempo, à cidade. Sou natural de Paris, mas depois cresci em Valpaços, Trás-os-Montes.
Vivia num imaginário que não correspondia muito à realidade com a qual me confrontei depois quando era um jovem adulto. Achava que o mundo era muito semelhante ao mundo que imaginava. Fiquei um bocado desiludido quando percebi que o mundo imaginário irreal era muito mais rico do que o mundo real. Penso que é uma rutura comum na fase da adolescência, especialmente num meio mais fechado.
Convivias com pessoas mais velhas?
Tinha uma ligação muito grande com pessoas mais velhas. A emigração dos anos 60 e 70 levou muita gente a abandonar os meios rurais, depois os jovens também partiram para estudar fora. Eu próprio fui estudar para o Porto na altura do 11º ano. O convívio girava à volta das pessoas da família e da comunidade, na qual estavam sempre incluídas pessoas mais velhas.
Fala-nos do teu percurso profissional.
Sou licenciado em Economia, pela Faculdade de Economia do Porto. Depois vim para Lisboa para candidatar-me à Escola Superior de Teatro e Cinema (antigo Conservatório Nacional de Arte Dramática).
A minha formação em teatro foi variada. Comecei em Lisboa, depois fui para Madrid (RESAD), seguindo-se S.Paulo/Brasil (ECA/USP) e acabei em Paris (CNSAD). Em 2011 concluí a licenciatura em Tradução – Inglês, Francês e Espanhol. Este foi o meu percurso académico.
A nível profissional, trabalhei como professor de espanhol, formador de inglês, francês, explicador de micro e macroeconomia, estatística e matemática. Mas tenho trabalhado essencialmente na área do teatro como intérprete. Comecei agora a trabalhar na área da encenação. Acompanho o meu percurso, sempre que possível, com a formação. Na altura do Conservatório fiz muitos workshops e no ano passado fui para Nova Iorque como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian – onde fiz uma formação intensiva para atores profissionais junto à SITI COMPANY/ Anne Bogart.
Os 35 anos, que poderiam ser um limite para deixar de investir, passaram a ser um marco para continuar a pesquisar.
Já tinha feito um treino intensivo em Madrid em 2004. Porém, quis confrontar-me novamente com outro treino muito físico. Neste caso, o método Suzuki. Com 35 anos, o corpo é o mesmo, mas envelheceu.
Ao longo da tua vida tens pensado sobre o teu processo de envelhecimento?
Sim. Penso que tem muito ver com o que nos é impingido direto ou indiretamente. Do género: “já tens 30 anos e já não podes fazer alguns papéis como o Romeu do Shakespeare”. Não faz sentido. No teatro posso fazer todos os papéis, não é uma questão de idade.
Senti que entre os 20 e os 35 anos, tudo foi muito fugaz. Mas depois penso que durante esses 15 anos muita coisa aconteceu. Essa sensação de fugacidade deve ser própria da juventude…
Lembro-me de ouvir a minha avó dizer que os 85 anos tinham custado imenso a passar, que viveu muita coisa, mas depois ouço o meu pai com 65 anos a dizer que foi tudo muito rápido.
Penso que depende da vivência de cada um. Gostaria de ter congelado esses 15 anos para pelo menos ter algum distanciamento. Mas se calhar é assim.
Este ano recebeste o Prémio Melhor Ator de Teatro atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) com a peça “Misterman”. Achas que este prémio também é fruto do teu amadurecimento pessoal e profissional…
Sei que esta nomeação foi para uma interpretação específica, mas encarei este prémio como o culminar de uma trajetória de doze anos. Se fui recompensado por este papel, foi porque desempenhei outros papéis. O esforço e dedicação anteriores é que me permitiram alcançar esta maturidade.
Gostas de interpretações misteriosas que depositam parte do trabalho no público, e é este que decide o destino da personagem. Na vida real a quem confias o destino?
Há uma esfera que posso controlar. Todavia, existem outras áreas que não consigo controlar. Para mim, a melhor forma de lidar com esta realidade, é aceitá-la. Assim não tenho que lutar contra coisas que estão fora do meu alcance.
Penso que o que me caracteriza sobretudo é o tentar ir à luta. Não quero chegar aos 70 ou 80 anos e sentir que não fiz as coisas por receio, medo ou dúvida.
Tento ir ao encontro do que julgo ser importante para mim num determinado momento.
Mas muita coisa nos escapa. As mais interessantes, misteriosas e as mais dramáticas…
Estás preparado para a personagem da velhice…
Quando era criança achava que não ia envelhecer. Agora deparo-me com um rosto diferente, mas não me faz confusão. O que me faz confusão é que tudo me escapa dos dedos a uma velocidade que não consigo controlar. O envelhecimento coloca-nos sempre a questão da morte, apesar de esta poder ocorrer em qualquer fase da vida.
A morte não me assusta. Tinha muito medo de morrer quando era miúdo e adolescente, acho que tinha a ver com o facto de querer fazer muita coisa. Mas aquela ânsia irracional de querer viver e experienciar tudo deixou de existir. Acabei por relaxar e encarar a morte com uma certa naturalidade.
Tens medo de ser esquecido?
Tenho pensado nisso, no esquecimento. Não tenho medo, porque tenho a certeza que vou ser esquecido.
As pessoas que se vão lembrar de mim depois de eu morrer, vão morrer, e com elas, a lembrança que tinham minha. Poderemos perdurar nas próximas gerações, como uma memória viva, depois como uma história, depois como um nome, até deixarmos de ser um nome. É a ordem natural das coisas.
Esquecer-me de mim, sim, assusta-me. A doença e a perda da memória.
A Annie Giradort (uma atriz francesa que morreu com Alzheimer) dizia nos últimos anos da sua vida: “os filmes que eu fiz e os homens que eu conheci são a bela história da minha vida, mas agora vocês conhecem-na melhor que eu”.
Caso aconteça, provavelmente não terei consciência da perda da minha memória. Mas viver uma situação dessas e deixar essa imagem final às pessoas, é assustador.
Não tenho medo da fragilidade no teatro, mas da fragilidade do corpo marcado pela doença…
Não gostas da palavra carreira, preferes a palavra caminho. Vês a velhice com um bom caminho?
Vejo como o único caminho [risos]. Aos 30 vivo o que não poderia viver aos 20 e aos 40 viverei o que não vivi aos 30.
Ultimamente, tenho pensado se o caminho inevitável não será o da amargura. É tão fácil chegar a esse ponto, ou porque se tem expetativas não concretizadas, ou por acontecimentos externos, tragédias que não podemos controlar e suportar.
O nosso corpo vai mudando com a passagem dos anos e nem sempre é fácil conviver com isso. A ideia da beleza ainda está muito associada à juventude. Não se diz a uma pessoa mais velha que é bonita, mas sim que está a envelhecer bem. O estigma da velhice pode ser particularmente cruel com as mulheres. A beleza não se desvanece com o passar dos anos, transforma-se. Uma pessoa mais velha que se preocupa e que tem cuidados pode permanecer incompreendida perante o olhar dos outros. Ouve-se: para quê? Porquê? Se já não é jovem…
Como é envelhecer em palco?
No teatro podemos desempenhar papéis de todas as idades No cinema, não. Aqui já se procura, habitualmente, uma identificação com os papéis delineados pelos cineastas.
No teatro, por exemplo, não é necessário ser-se mulher para interpretar um papel feminino. Um ator novo pode fazer um papel de velho, sem ter de necessariamente de se caraterizar.
Os papéis vão reduzindo à medida que se envelhece?
Penso que sim. Para as mulheres, mais ainda. Basta ler entrevistas de atrizes. Muitas mencionam o mesmo, ou seja, menos trabalho a partir dos 40/50 anos. Vamos ver o reportório clássico e contemporâneo e verificamos que há muitos mais papéis para homens do que para mulheres. E, no entanto, há muito mais atrizes do que atores.
Também tem a ver com o percurso individual. Não se percebe muito bem porque funciona para umas pessoas e não para outras. É um pouco misterioso.
Como é que te vês com 80 anos?
Ainda gostava de ter capacidade para viajar. Vejo-me também a trabalhar, mas de forma mais espaçada, a energia não será a mesma, é uma realidade.
Penso se haverá um regresso ao campo (Valpaços)… não sei….
Não sei se com o avançar da idade também se caminha para uma espiritualidade maior. Nessa fase estás mais contigo próprio, é um processo natural.
Tenho muitos interesses, portanto, é fácil imaginar-me também a fazer outras coisas, que não tenham a ver com o mundo da representação.
Qual é a tua opinião sobres os lares de terceira idade?
Acho que é difícil ter uma opinião sobre esses lugares.
Sentes que estes espaços são desumanizados?
Considero que tem muito a ver com as pessoas que trabalham nos lares. Depende da relação que é necessário criar entre quem trabalha num lar e a família do idoso. É necessário reforçar os laços entre todos os intervenientes (profissionais, familiares e idoso).
Em algumas situações o lar é a única alternativa. No meio rural, onde era habitual encontrar-se pessoas que tomavam conta de idosos, a situação mudou. Já não se conseguem contratar pessoas para apoiar os idosos nas suas casas. Envelhecer em casa sem apoio e com alguma incapacidade física é uma realidade dura.
A população está cada vez mais envelhecida. Se o estado estivesse atento a esta nova realidade e considerasse que até no plano financeiro este segmento é uma mais valia e não um encargo, talvez houvesse uma maior consciencialização e consequentemente medidas de atuação destinadas a essas pessoas.
É uma camada da população onde deveria haver mais investimento. Felizmente, encontram-se pessoas envolvidas em novos projectos destinados à integração e participação dos idosos na comunidade, nomeadamente nos meios rurais.
Um sonho…
Gostava de não perder a fé.
A fé nas coisas, nas pessoas, em mim. Às vezes sinto que é fácil perder a orientação. Não sei se tem só a ver com o facto de vivermos numa sociedade em que a informação é disparada por todos os lados, e de não sabermos muito bem o que sentimos ou o que deveríamos sentir.
Há algo de transcendente nos lugares de fé. No teatro também, algo maior que nós, algo que nos permite sonhar. [suspiro]
Páginas oficiais de Elmano Sancho