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Ana Gomes e David Benasulin

Foto de Rita Lemos

Ana Gomes (26 anos) é madeirense de alma e coração e veio viver para Lisboa quando entrou na Faculdade de Belas Artes. Desenhar sempre foi a sua magia e escapatória, e não é por acaso que diz que é uma sortuda por trabalhar naquilo que gosta. É talentosa e enérgica, de sorriso fácil e amante de gatos. É artista.

Lisboeta, com raízes judaicas, David Benasulin (42 anos), formou-se em Comunicação Empresarial e Marketing e tem trabalhado essencialmente na indústria musical. Casado e com um filho de 6 anos, é um homem de múltiplas paixões e talentos: a música, o desenho, a vida. Um sonhador que não conhece o impossível.

Estes dois amigos têm várias paixões em comum: a pintura, as tatuagens, a banda desenhada, a ilustração, o cinema.
É num imaginário artístico muito peculiar que vamos encontrar os pontos que unem esta amizade com 16 anos de diferença.
Atualmente são colegas num workshop de desenho, citam artistas cuja arte é pouco convencional, têm a obsessão pelo perfecionismo e imaginam-se futuros idosos ativos. Vão continuar a  pintar os seus quadros, a tatuar os seus corpos, a sonhar, e sonhar é viver em plenitude até ao último momento.
A arte como mote para uma valsa a dois. Sem rótulos ou preconceitos. A vida sem prazos de validade.

Como é que se conheceram?
David Benasulin – A Ana foi-me apresentada, há cerca de 4 anos, pelo meu amigo Rui Veiga. Pareceu-me boa pessoa.
Ana Gomes – Percebemos logo que tínhamos imensos gostos em comum. Na altura, estava a tirar um mestrado em desenho e como uma das grandes paixões do David é pintar, ficarmos amigos foi um processo bastante natural.

Foto de Rita Lemos

Têm 16 anos de diferença. Esta distância poderia ser uma barreira para a vossa amizade?
David – A idade em alguns pontos não se aplica. No nosso caso, quando se gosta de arte, existe um pensamento linear, uma pessoa pode ter 80, 20 ou 16 anos, e continua a gostar de arte, é um interesse transversal que une pessoas.

O que vos aproxima mais é a arte?
David – Eu diria que sim. Pois há todo um imaginário e universo subjacente à arte. A arte é lata, podemos estar a falar de pintura, de ilustração ou desenho.
Ana – A arte comporta vários estilos, desde autores mais tradicionais até aos mais atuais. Lembro-me que quando conheci o David, ele gostava muito do pintor Michael Hussar, um artista contemporâneo. Também falámos sobre o Allen Williams, penso que até fui eu que lhe dei a conhecer a sua obra. A pintura é um tema recorrente na nossa conversa, frequentemente trocamos ideias sobre artistas que nos levam posteriormente a novas descobertas.

Há umas décadas atrás não seria habitual ver duas pessoas em fases de vida distintas com interesses semelhantes. Acham que a sociedade se alterou?
Ana – Acho que sempre existiram e existem pessoas com interesses em comum. No meu caso tenho 26 anos, e não considero a idade uma barreira. O mais importante  é que as pessoas, independentemente da idade, consigam estabelecer uma boa comunicação.
David – Também não considero que a idade possa ser um entrave. Mas a mentalidade, talvez. Em algumas situações esta questão coloca-se. Consigo imaginar que uma pessoa mais velha e outra mais nova possam não encaixar. Devido a algumas armaduras e barreiras criadas pela divergências de diferentes modos de pensar e sentir. Porém, a partir do momento em que há o mínimo de abertura e um ponto de ligação, ou vários, pode desenvolver-se uma química ou empatia.
Ana – Acho que tem a ver com a particularidade de interesses. Eu gosto de arte clássica e arte mais atual, não a arte moderna de abstracionismo, penso que o David concorda comigo. Os nossos interesses são muito específicos. Atrai-nos a mitologia e um imaginário mais figurativo.

Estão envolvidos em alguma atividade comum?
David – Sim, estamos a fazer um workshop de desenho juntos. E está a ser muito prolífico e enriquecedor. Como já frequentava este workshop, lembrei-me de convidar a Ana para participar. Achei que seria interessante para ela.
Ana – Isto foi uma situação engraçada, porque o David disse-me: “Ana, estou a ter aulas com o pintor Carlos Barahona Possollo”. Respondi-lhe, estupefacta: “Aquele, que tem uma pintura hiper-realista? Como é que conseguiste?”
David – Sempre fui muito persistente [riso]. Mas é interessante verificar que neste workshop estão inclusive pessoas mais velhas que nós, e estão todas unidas por esta paixão. A Ana é a aluna mais nova, é o nosso benjamim.

Têm aprendido um com o outro?
David – Sim, ao longo destes anos, apesar das limitações de tempo de cada um. Ela tem-me dado algumas dicas valiosas (mais ela a mim), porque tem esse treino, essa escola. No mínimo, dou-lhe a conhecer novos artistas.
Ana – Também tenho uma história de faculdade mais recente. Há coisas que treinei há pouco tempo.

Qual é o vosso percurso académico?
Ana – Tenho a licenciatura em Animação e um mestrado em Desenho, pela FBAUL – Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Tenho tido uma formação contínua. Acabei a formação em desenho há dois anos, mas depois continuei sempre a frequentar cursos de desenho, em que curiosamente, também era uma das alunas mais novas.
Na faculdade tínhamos sempre pessoas de 60 ou 70 anos, a ter aulas de desenho com um modelo nu. Penso que para estas pessoas mais velhas, era uma forma de saírem de casa, de conviverem com novas pessoas, nomeadamente pessoas mais jovens.
David – Formei-me em Comunicação Empresarial e Marketing. Contudo, sempre tive esta paixão pelo desenho, a par de outra, que é a música. Tive várias bandas, mas é com a formação do grupo The Ultimate Architects, que desenvolvo um projeto musical adulto e duradouro. Estivemos no ativo durante 7 anos. O desenho era algo que fazia muito, mas a partir da escola secundária deixei o desenho completamente de parte. Fiquei focado na música, nos estudos, depois na esfera profissional. Foi em 2008 que retomei o desenho. Desde então, nunca mais parei.
Ana – Sou daquelas pessoas que tem sorte de trabalhar na sua paixão. Não faço desenho… trabalho na área digital, faço animação 2D e 3D. O desenho é uma escapatória, uma atividade extra. Enquanto que no meu trabalho passo o dia em frente ao computador, nas aulas de desenho estamos numa sala a criar, em contacto com os materiais, o estado de espírito e ambiente são completamente diferentes.

Três artistas que consideram uma referência no universo da pintura:
David – Caravaggio é a referência. Também vou homenagear Carlos Barahona Possollo, uma fonte de inspiração nacional, e o que é nacional, também é bom. Para completar o top três, escolho um contemporâneo – Roberto Ferri, um jovem pintor italiano.
Ana – Pronto, o David roubou-me dois nomes [gargalhada]. Tenho o amor do meu coração que é o Giger, infelizmente partiu este ano. Outro dos meus amores é Michelangelo. Para terceiro lugar, nomeio Martin Wittfooth – pintor contemporâneo que retrata animais em composições surreais.

Já reparámos que têm ambos tatuagens. Algumas foram desenhadas por vocês?
Ana – O David tem mais… mas sim, desenhei as minhas duas tatuagens.
David – As minhas são meio meio… ou seja, peguei em desenhos que fiz e depois foram redesenhados.

Podemos dizer, que no vosso caso, a paixão pela pintura interliga-se com o  gosto pelas tatuagens…
David – Acho que sim. Apesar de conhecer pessoas, inclusive tatuadores, que diriam que as tatuagens não são uma arte. Não concordo com esta posição, pois mesmo que estejam a tatuar algo que não desenharam, acabam por dar o seu cunho pessoal.

Foto de Rita Lemos

Tatuar o vosso corpo é uma necessidade?
David – Para mim, é. Gosto de usar a arte.
Ana – Olho para o espelho e já me vejo toda tatuada. O corpo é uma tela em branco. Sem tatuagens parece que me falta alguma coisa.
David – Se gosto tanto de desenhar, porque não usar os desenhos nas minhas tatuagens? Esta questão não é consensual, mas para mim faz todo o sentido. Gosto de olhar para o meu corpo e ver um pouco de arte. Cada um é livre de fazer o que quer.
Ana – Acho que hoje em dia a tatuagem é cada vez mais banal. É algo mais socialmente aceitável. Porém, na minha terra natal (Funchal, Madeira), ainda é muito raro ver na rua pessoas da minha idade, ou mais novas, com tatuagens.

As tatuagens estão quase sempre associados à fase da juventude. Imaginam-se mais velhos e a continuar a tatuar o corpo?
David – Imagino, sem dúvida. Quando me fazem essa pergunta, respondo que o meu corpo pode estar diferente (mais descaído), mas as tintas ficam lá e todo o seu significado.
Ana – Completamente. Acho que à medida que for envelhecendo ainda vou ficar mais ousada. [gargalhada]
David – Já estou a pensar na próxima.
Ana – Eu também. Vou fazer nas costas com um motivo japonês. [riso]
David – A minha próxima prioridade é tatuar a Fénix.

Sempre conviveram de uma forma natural com gerações mais velhas?
Ana – Sim. Agora já não tenho avós paternos, mas tive uma relação muito próxima com eles. Os meus pais tinham o costume de nos levar (a mim e à minha irmã) a visitar os avós no fim de semana. No sábado fazíamos uma visita aos avós paternos e o domingo era reservado para os avós maternos. Hoje em dia, agradeço muito aos meus pais, por nos terem proporcionado esse convívio regular. A minha família é muito numerosa,  a minha avó paterna ainda chegou a conhecer os bisnetos. Estar com várias gerações, mais velhas ou mais novas, sempre foi uma constante na rotina da minha família.
David – Sempre tive presentes os meus avós, tios, amigos mais novos e mais velhos. Acho que se aprende sempre com pessoas de todas as idades. Todavia, gosto muito de ouvir pessoas mais velhas, que tenham algo a dizer, com conteúdo, com história, com vivências. A transmissão oral para mim continua a ser uma das melhores formas de apreender lições de vida. Podemos ir à internet, ou ler um livro, no entanto, a transmissão oral é a forma de aprendizagem mais forte, mais pessoal, é aquela que se interioriza melhor. Tive a sorte de ter pessoas chave ao longo da minha vida que me transmitiram experiências de vida muito interessantes e valiosas.

Havia uma troca de experiências com essas pessoas?
Ana – Não me recordo de muita coisa… Lembro-me que a minha avó materna me dava na cabeça para ser mais paciente. [riso]
David – Acho que fomos influenciados por essas pessoas, de uma forma consciente ou não. Lembro-me das viagens da minha avó paterna (era uma pessoa aventureira e de mente aberta), a musicalidade veio dos meus tios Fernando e Carlos, o desenho veio do meu avó – ele fez um curso de caligrafia, tinha a letra mais bonita que eu me lembro. Também me recordo de estar sentado ao colo dos meu tios e eles estarem a desenhar rostos femininos perfeitos. Aquilo tinha um grande impacto em mim, tinha 6 ou 7 anos. Estas coisas marcam-nos, podem ficar guardadas ou sair cá para fora.

Pensam na fase da velhice? Imaginam-se idosos?
Ana – Sim, imagino-me com calças de lycra cor de rosa, a andar nos autocarros. Não sei porquê… [riso]
David – De alguma forma, preparo essa fase da vida. Estou a fazer um plano poupança reforma (PPR). [gargalhada]
Ana – O meu plano chama-se “debaixo do colchão”. Não tem esses nomes finos. [riso]
David – Só peço uma coisa: que nessa fase não tenha nenhuma doença gravosa. Porque, mesmo sendo mais velho, ainda vou ter muito a dizer e muito a fazer. Imagino a velhice como uma progressão calma e harmoniosa daquilo que estou a viver. Não imagino a velhice como uma fase danosa, angustiante e deprimente.

Foto de Rita Lemos

Como é que gostariam de viver quando forem mais velhos?
David – Gostaria de continuar ocupado, fisicamente e mentalmente. Quero poder atingir aquele ponto, em que vou fazer exatamente aquilo que quero, porque já atingi esse estatuto e essa possibilidade. Essencialmente, não quero estar parado.
Ana – Quando vejo uma pessoa mais velha e curva na rua, digo para mim própria que um dia não quero ficar assim.
Não sei se é em Portugal, ou em Lisboa, mas a terceira idade é muito decadente, acho que as pessoas são deixadas demasiado sozinhas nos seus apartamentos. Como venho do Funchal, consigo comparar estas duas realidades. Os meus avós maternos vivem lá e ainda vão falando com os vizinhos, e nós como família fazemos para manter vivos os laços e o convívio.
Em Lisboa, a realidade é outra. Por vezes, vejo senhoras mais velhas no supermercado a carregar compras pesadas, sem ninguém que as apoie. Acho que também não têm acesso à informação. Existem serviços que levam as compras a casa. Não consigo imaginar-me velhinha, a viver desta forma.
Faço parte daquela percentagem de pessoas que não faz planos para ter filhos, portanto, para mim será uma agravante. Provavelmente vou estar sozinha, triste e desmazelada, num canto sem ninguém para me aturar… bem, terei sempre os meus gatos [riso]. Mas também me consigo imaginar como o David, feliz nas minhas atividades, especialmente a pintar.
David – Acho que os idosos de amanhã, onde estamos todos incluídos, serão totalmente diferentes dos nossos pais ou avós. Temos vivências totalmente diferentes, no nosso caso, por exemplo, temos toda esta disponibilidade de informação, de evolução tecnológica e avanços na medicina. Só espero que haja uma graciosidade no envelhecimento e que o meu ser não “estupidifique”… Espero não ficar apanhado pela depressão do envelhecimento. Quero manter a mente sã, não ceder aos problemas e continuar a criar.

Um sonho?
David – Conseguir gerir e exteriorizar através da pintura aquilo que eu imagino. Isso seria um sonho realizado.
Ana – Sonho com o dia em que ficarei satisfeita com o trabalho que produzo. Que consiga fazer chegar as minhas intenções e o meu olhar a quem vê e sente a imagem de um modo peculiar. No entanto, receio que o perfecionismo me impeça de realizar este sonho. É esperar para ver, e continuar a aproveitar cada dia com o que mais gosto de fazer.

Páginas artísticas da Ana e do David:

Art of Ana Gomes

Arte de David Benasulin

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