Ana, em movimento ascendente
Existem várias personas: a Ana Bacalhau a solo, a Ana dos Deolinda e a Ana como mulher dentro do ser humano.
Completou em novembro do ano passado 38 anos de vida e crescimento. Orgulhosamente.
Ainda é do tempo das famílias alargadas, teve a sorte de viver e crescer rodeada pelos avós maternos. Conviver com pessoas de todas as gerações era algo natural e comum, quando era mais nova. Avançamos uns anos e percebe-se que a realidade se alterou. Depois de perder os seus velhos mais próximos, a diversidade etária no seu círculo de afetos foi diminuindo. A cultura predominante impõe o culto da juventude, do consumo, do imediatismo e individualismo. Estes padrões não se coadunam com a glorificação da passagem dos anos.
Mas Ana é firme nas suas convições. Exprime-se de forma fluente, vivaça e desempoeirada. Vive o processo de envelhecimento como um movimento ascendente.
Quer construir um legado que sobreviva ao seu desaparecimento, deixar uma marca no mundo, alegrar-se, sonhar e abraçar o desconhecido do amanhã.
No agora, Ana Bacalhau é artista talentosa, mulher segura e defensora dos direitos humanos. Para o futuro tem um desejo simples: nunca perder o sorriso pela vida fora.
Que idade tens e onde nasceste?
Fiz 38 anos em novembro do ano passado e nasci em Lisboa, no Campo Grande, no Hospital de Santa Maria e vivi uma boa parte da minha vida no bairro de Benfica.
Como foi a tua infância? Tinhas contacto com os teus avós e com pessoas mais velhas?
Sim. Uma coisa interessante e que já não acontecia muito na altura é que eu vivia com os meus pais e com os meus avós maternos. A casa era muito grande, quando o senhorio decidiu alugar uma parte da casa a mais uma família, vieram os meus avós.
A presença de pessoas com mais de 50 anos foi uma constante na minha vida e na minha educação.
Além dos meus avós, juntávamo-nos muitas vezes com todos os seniores da família (tenho uma família muito grande!). Os irmãos da minha avó iam lá a casa e nós íamos à deles. Aliás, cheguei a viver com a minha bisavó – a avó Lina – até aos 7 anos. Nessa altura ela morreu e deixou uma casa na terra, numa aldeia perto de Tondela, em Viseu. Os meus avós reconstruíram a casa e passei a ir para lá todos os verões. A aldeia já era envelhecida, e convivíamos naturalmente miúdos e idosos.
Encaras o envelhecimento como uma condição humana universal ou nunca pensaste nisto?
Penso, penso cada vez mais. Até porque já não tenho avós, vou perdendo as minhas referências mais antigas e penso no meu próprio processo também.
O envelhecimento por si só não é uma ideia que me deprima. De todo, abraço-o, no sentido do amadurecimento, da aprendizagem, de experiências acumuladas. Eu sou muito melhor naquilo que faço hoje em dia, até profissionalmente, do que era há 10 anos atrás.
A única coisa que assusta a todos é a perda de faculdades, a falta de saúde, mas isso também se pode potenciar, em certa medida, agora, com uma alimentação cuidada, uma vida regrada. Mas ao mesmo tempo também quero saber viver porque não me interessa chegar aos 90 anos não tendo vivido. Quero gastar todo o sumo que a vida tenha mas de forma bem gerida para chegar aos 90 ainda a fazer tudo o que eu quero fazer e posso fazer bem.
A minha última professora de canto, a Rosarinho, tinha 84 anos e estabelecemos uma relação de amizade muito grande. A Rosarinho fazia tudo. Foi daqueles envelhecimentos que eu invejo! Ela conduzia, viajava sozinha, era absolutamente independente, uma força enorme. É a isso que eu aspiro. Há uma componente de sorte e há uma componente que eu posso precaver agora, mas não vejo o processo de envelhecer como uma desgraça.
A sociedade, principalmente para as mulheres que vivem também da sua imagem, não é fácil, mas obrigo-me a não deixar enredar nessas armadilhas.
Fala-se muito do combate da discriminação racial, de género, da orientação sexual, mas ainda se discute pouco a discriminação em função da idade. Porque é que achas que a sociedade continua a ignorar esta realidade?
O meu primeiro feeling é porque todos nós temos muito medo de encarar a morte, a mortalidade. Encarar o envelhecimento é encarar a própria mortalidade.
Depois toda a cultura de entretenimento está focada na juventude, ao contrário do que acontecia há 50 anos atrás.
Houve um movimento nos anos 60 que virou toda a proposta cultural e de entretenimento para a juventude. Agora há muitas imagens de juventude, e de gente que já não é tão jovem mas que está desesperada por manter uma aparência de juventude. Há poucas referências ao envelhecimento natural e sorridente.
E até que ponto hoje em dia, com o aumento das idades da reforma, essa vivência que eu tive com várias gerações continuará a existir?
E o mercado de trabalho, que não consegue integrar pessoas que perderam os seus trabalhos aos 50 anos. É um património que as empresas também estão a perder e a ser pouco inteligentes. A riqueza e a evolução só se encontram no equilíbrio entre aquela força e criatividade, aquele respirar ideias novas, que é a juventude e a maturidade e o saber implementar, o saber valer ideias que nós só ganhamos a partir de meio século. As empresas deveriam neste momento já estar a pensar em como juntar equipas intergeracionais para fazer avançar de forma sustentada as suas ideias e avançar no futuro. Mas quando se pensa no futuro nunca se pensa em pessoas acima dos 45 anos, o que é uma estupidez. Perdeu-se a figura do ancião. Entende-se o desespero das pessoas ao envelhecer porque a sociedade a partir dos 45, 50 anos parece que os esquece. Uma pessoa tem quase 50 anos à frente e não quer envelhecer nem parecer velha senão é esquecida.
Agora que já há mais exemplos nas capas de revistas de mulheres acima daquele padrão de beleza, agora que estamos num debate alargado sobre os vários tipos de imagens que não aparecem, e que são pluralistas, devíamos incluir também o debate sobre a idade e a forma natural de envelhecer.
Os homens e as mulheres envelhecem de forma diferente. Concordas?
No seu âmago acho que não, a sociedade é que vê o envelhecimento de um e de outro de forma diferente. Valoriza ou desvaloriza consoante o sexo.
Costuma-se dizer que os homens são como o vinho… E eu costumo dizer que as mulheres são como o mel, não têm prazo!
Mas não é assim… Sabemos que uma mulher a partir dos 40 tem de esconder os seus cabelos brancos. Poucas figuras públicas têm a coragem de envergar a sua cabeleira branca e as rugas. Principalmente as rugas, faz tanta falta ver alguém acima dos 40 ou 50 com rugas.
O olhar que temos sobre o envelhecimento de homens e mulheres é que é diferente… As aprendizagens e experiências serão partilhadas.
Obviamente que para um homem a saída do mercado de trabalho é mais violenta do que para uma mulher porque a mulher já tem, pelo menos nas gerações anteriores, um papel de cuidadora da família, que vai manter mesmo depois de se reformar.
Há a ideia do trabalho definir o homem e quando este deixa o seu trabalho como se define? Se calhar nesse sentido, é um período mais violento na vida de um homem, como a menopausa é um período mais violento na vida de uma mulher, porque é mais uma altura em que tudo no seu corpo vai mudar e desta vez de forma definitiva. Deixa de ser fértil. Mas só de corpo, porque de ideias não.
Sempre se atribuiu a utilidade de um ser humano à sua capacidade de procriar. Na sociedade não havendo lugar para as famílias alargadas para a mulher e o homem poderem usufruir da sua família, quando a mulher perde a sua capacidade de gerar vida sente que o seu prazo de validade em termos de visibilidade na sociedade é colocado de lado.
Mas agora há cada vez mais pessoas que não têm descendência, casais que decidem não ter filhos e também se define muito a velhice pelo papel dos avós e quando não se tem descendência parece que a invisibilidade ainda é maior.
Uma coisa que me aterroriza é aquelas pessoas que querem ter filhos para os filhos cuidarem delas mais tarde. Isso é horrível.
Uma pessoa não se valida através de ninguém, só de si própria.
A sociedade ainda coloca muita pressão nas mulheres. Não quero que me vejam como mãe ou avó, quero que me vejam com outra luz.
A sociedade vai ter de se abrir, vamos ser milhões e temos algo a dizer e a nossa voz não se pode calar.
O teu grupo de amigos espelha a diversidade etária? Tens amigos de todas as idades?
Agora menos. Até à idade adulta tinha um grupo de amigos e de família bastante intergeracional. Hoje em dia perdi as referências dos meus avós, da minha professora de canto. Fui à procura de referências com mais de 65 anos e não há muitas. O meu círculo não espelha essa diversidade, talvez fruto da minha profissão. Na minha profissão infelizmente não há muita gente a fazer coisas acima dos 65 anos. Contam-se pelos dedos de uma mão. Então mulheres… Temos a nossa grande Lena d’ Água, que também sofre na pele…
O meu trabalho exclui as pessoas mais velhas. Não no público, que tenho pessoas de todas as idades, mas no meu dia a dia de trabalho, na minha equipa de trabalho, nas equipas que montam os palcos, nas equipas de promoção, e até nos colegas.
Uma das minhas tardes mais bem passadas foi com o Eduardo Lourenço. É uma delícia falar com ele. As pessoas serem interessantes não tem a ver com a idade.
Eu vou ser a mesma quando tiver 80 anos, uma pessoa que já teve 20, já teve 30, não vou para outra dimensão quando tiver 80.
As pessoas têm a ideia da velhice gagá.
Os media quando entrevistam alguém idoso é para lhes perguntar: mora numa casa a cair? Está aqui abandonado no lar?
Tratam-se as pessoas idosas não como adultas, mas como bebés grandes. Perdem o nome, desumanizam-se estas pessoas, perdem a identidade. E elas só conseguem lutar até um certo ponto, depois desistem, deprimem. Os nossos idosos são deprimidos.
Alguma vez te sentiste ou te acharam demasiado velha para fazeres alguma coisa?
Provavelmente sim. Taxativamente não me lembro de me terem dito. Talvez em termos do que vestir, e eu a primeira coisa que faço quando me dizem para não fazer é fazer.
Sinto algumas coisas disfarçadas, mas estou-me absolutamente a borrifar.
Enquanto eu me sentir bem, capaz, com ânimo e o tal espírito quero lá saber da idade que tenho.
E o contrário? Já te saiu “és demasiado velho(a) para…”?
Só se for a um miúdo de 16 anos que já tem idade para ter juízo. Aí sim, mas a adultos não me lembro de alguma vez o ter feito porque não acredito nisso. Acredito que as pessoas têm de fazer o que sentem, quero lá saber a idade delas.
Achas que a música ajuda a combater o fosso geracional ou pelo contrário aumenta-o?
Ajuda, para já porque a música não tem idade, não diz “isto é para maiores de”. As crianças ouvem a nossa música que é feita por pessoas de 30 e muitos anos, porque gostam. As pessoas de 80 anos ouvem também porque gostam. É uma coisa absolutamente democrática. Nos concertos já vi pessoas na primeira fila com 70 e 80 e muitos. O concerto todo com um sorriso na cara e uma alegria nos olhos. Mais senhoras, elas aguentam mais o embate.
Imaginas-te com 80 anos?
Ai não que não imagino! Eu quero trilhar um caminho em que olhe para trás e fique feliz com o meu legado pessoal, profissional, com aquilo que criei. Quero que a minha marca no mundo me represente bem.
Mas por outro lado ainda vou ter muita coisa para fazer: viagens, muitas experiências ainda, quero rir muito, se calhar vou querer ensinar outros (quando era criança gostava de ser professora). Se pudesse ter uma vida como a Rosarinho era o meu sonho. Quero continuar a ter planos, mas morrer descansada porque o que deixei aqui me representa.
E há uma coisa espetacular que me dizem, é que a partir de uma certa idade estás-te a borrifar, dizes o que te apetecer e és perdoado! Já não precisamos da validação dos outros para nos validarmos a nós próprios. E os idosos não nos podem ensinar isto e outras coisas porque estão divorciados de nós.
Uma artista feminina mais velha que admires…
A Helen Mirren, como atriz e na área da música a Celeste Rodrigues, a irmã da Amália. Eu quero ser assim. Ainda estar a cantar aos 90 com alguma dignidade e as pessoas ainda me quererem ouvir.
Consideras colocar um dia os teus pais num lar?
Seria incapaz de o fazer contrariando-os. Há diversos problemas: um lar bom é incomportável para a maioria das famílias portuguesas. É uma injustiça social. Se o Estado pudesse comparticipar soluções à medida de todas as bolsas era diferente.
Em relação aos meus pais, eu não farei nada que os torne infelizes, será uma decisão conjunta e com eles certos do que querem fazer. O ideal seria tê-los sempre perto de mim, numa casa deles ou na minha casa, tendo eu uma casa que os pudesse albergar. E ter alguém que os pudesse ajudar em sua casa quando eu não pudesse estar. Mas eles depois é que me vão dizer o querem fazer.
Conheces a realidade dos lares? Já foste visitar algum?
Já, conheço dois lares. Um muito bom, top, como um hotel. Nos países nórdicos algumas pessoas a partir dos 50, 55 anos decidem ir para estes lares, vão viajar, fazem as suas vidas, os seus amigos, porque aquilo tem condições. Já estive num lar assim e é espetacular. As pessoas estão super felizes.
E já tive noutro, em que não é assim. Realmente é horrível, é deprimente, desde o staff que infantiliza as pessoas, não as trata com dignidade, até ao próprio sítio onde estão, onde misturam desde pessoas que estão independentes até às pessoas com demência.
Nesses lares a alimentação é má, as zona comuns frias…
Para ti qual é o significado de envelhecer com orgulho?
Um sonho…
Só um?!! Nunca perder o sorriso pela minha vida fora. Ter sempre razões para sorrir. As lágrimas são muito importantes porque marcam pontos de passagem, de viragem, de aprendizagem e o sorriso é o sinal que já ultrapassamos e que estamos prontos para avançar.
Tenho cada vez mais sonhos, nada é impossível de acontecer.
Fotos de Isabel Pinto