
A Vizinha
Nasci nesta casa e aqui vivo há mais de 90 anos! Tive uma vida muito boa, passeei muito com meu marido por esse mundo fora… sabia que ele entrou no filme “Camões” em 45? Eu era modista, trabalhei para a Companhia Nacional de Bailado, entre outras”- dizia, enquanto me convidava a entrar e se dirigia para a sala de jantar para me mostrar as inúmeras fotografias que expõe orgulhosamente no aparador dessa divisão.
“Hoje em dia vive-se mal… tem-se tudo mas não se sabe viver… não se sabe apreciar o que se tem, porque se quer sempre mais” – continuou.
“Eu também era muito alta, tal como a menina, agora estou reduzida a isto, caí há três anos, parti o fémur e tem sido uma recuperação lenta. Mas venha ver, venha ver as fotos” – enquanto abria uma das gavetas do aparador para me mostrar as ilustrações do seu glorioso passado. Fotos antigas. Um casal jovem, de feições bonitas. Altos. Apensas às fotos, mais recordações: contas de restaurantes de capitais europeias, bilhetes de teatro, postais. Toda uma vida naquela gaveta. O tempo em que eram jovens e bonitos.
“Está a ver? Eu fiz os chapéus todos deste bailado, é o meu nome que vê aí” – disse, enquanto me mostrava um panfleto antigo da CNB.
“Da próxima vez que vier cá trago-lhe umas fotos minhas também!” – respondi irreflectidamente. Na realidade, o meu passado ainda é muito o meu presente, comparativamente ao que tinha acabado de presenciar. Afinal de contas tenho pouco mais de 30 anos, quase os mesmos que ela tem de reforma!
“Traga, sim, quero vê-las! Sabe que vão vender o palácio daí da frente? Conheço bem os marqueses, fazia roupas para as meninas… vê, nesta foto? Sou eu com elas, há muitos anos. Agora estão todos no Brasil e querem desfazer-se do palácio…”
” Foi um prazer, até à próxima!”- despedi-me.
“As suas fotos! Não se esqueça de trazê-las da próxima vez!”- lembrou-me, enquanto me via acenar com a cabeça antes de fechar cuidadosamente a porta.
Depois de constatar mais uma vez que a casa ainda está inteira, verificação que faço frequentemente devido ao corropio do entra e sai dos turistas, o que mais gosto de fazer é ir descobrindo a vizinhança, a maioria dela já bastante idosa, e as suas inúmeras experiências passadas, as suas memórias. Vidas de outros tempos. Vidas cheias, ciclos prestes a completar-se. Vozes de uma Lisboa desaparecida.
Ana Godinho de Vasconcelos
Socióloga
