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Até ao fim, viver

“During Sleep” by Chiharu Shiota

“Passa do meio-dia.

O declínio começou.

Aqui, no vale, as sombras chegam mais cedo.

Subirei a montanha.

Lá no alto, os últimos fulgores do Sol

serão meus.

E quando a noite chegar, vai encontrar-me

lá no alto.”

Hermógenes

O envelhecimento e a chegada à idade idosa normalmente são vistos como uma triste decadência. O enfraquecimento das capacidades motoras, a mudança de papéis sociais, as perdas, a maior probabilidade de doenças e o aproximar da morte são fatores reais, que podem conduzir a sentimentos negativos de abandono, inutilidade, falta de autonomia e controlo sobre si e sobre o seu meio.

A compreensão da velhice tem atravessado uma mudança gradual. Anteriormente vinculada exclusivamente a incapacidades e perdas, passou a ser entendida como uma fase do desenvolvimento humano, constituída por perdas e ganhos.

A longevidade impulsiona à reflexão sobre o sentido atribuído à vida e aos seus múltiplos significados, relacionados com as diversas maneiras de envelhecer.

O facto da velhice ser considerada a última etapa da vida faz com que aumente a frequência de se pensar na vida e na morte e sobretudo a respeito do que vem depois da morte.

A questão da finitude que antes parecia longínqua, pouco pensada, na idade idosa torna-se mais próxima e real. A morte de pais, parentes e amigos remete imediatamente à própria morte.

O balanço da vida é necessário e inevitável e a busca pessoal para entender questões relacionadas com a vida, o seu sentido e as relações com o sagrado ou transcendente flui para o contacto com a espiritualidade.

O impacto das crenças pessoais influencia positivamente o envelhecimento. O bem-estar espiritual aumenta a resiliência – a capacidade humana que consiste em enfrentar, vencer e ser fortalecido ou transformado nas experiências de adversidade – e a qualidade de vida.

A depressão e a ansiedade, associadas muitas vezes ao medo da morte, parecem diminuir à medida que o indivíduo é mais espiritualizado.

As necessidades espirituais crescem de significado à medida que se aproxima a finitude e as pessoas têm oportunidade de encontrar o seu significado de vida, amor e companheirismo. A própria espiritualidade pode auxiliar para um menor sofrimento, menor valorização da dor e maior aceitação da morte.

A espiritualidade é um recurso interno de cada indivíduo, parte essencial da existência humana, é uma reflexão sobre o significado e propósito da vida.

A auto-realização está de mãos dadas com princípios como a independência, participação, dignidade, assistência, igualdade de oportunidades e tratamento.

Fazer e ser o melhor que podemos com os recursos que dispomos fortalece o princípio da dignidade. Direcionar o nosso desenvolvimento, através da adaptação e otimização de recursos internos, é um privilégio desta idade.

Manter ou transformar a conceção de valores (num perfil pessoal), é um parâmetro fundamental da existência na idade avançada. Manter ou transformar a própria existência possibilita a busca de um sentido para a vida. É um processo contínuo de atualização das potencialidades pessoais.

O otimismo, o controlo pessoal e o senso de significado funcionam como reservas que permitem enfrentar mais efetivamente os eventos críticos da vida.

As experiências emocionais positivas aumentam a disponibilidade de recursos psicológicos, uma vez que as pessoas com estados emocionais mais positivos são menos vulneráveis e estão mais disponíveis para contactos interpessoais e soluções mais criativas.

A espiritualidade (e/ou religião) contribui para o bem estar na velhice e o próprio envelhecimento pode levar a um desenvolvimento espiritual maior. É uma fase ideal para uma viragem decisiva rumo à ascensão.

É a etapa mais propícia para escapar do vale (onde as sombras chegam mais cedo) e atingir o cimo da montanha, para uma verdadeira superação do ser humano. Os idosos têm a felicidade de reconhecer os valores e as possibilidades desta fase da vida. Para a escalada da montanha, estão em melhores condições do que nas fases anteriores.

Possuem mais tempo, isolamento, discernimento, uma experiência rica e um menor grau de impaciência, que stressa os mais novos.

Em idade avançada, o ser humano, com maior discernimento, pode alcançar a sabedoria de desapegar-se dos valores fugazes.

No caminho da espiritualidade, a auto-aceitação, a independência do pensamento, a auto-transcendência, a compreensão do significado do envelhecimento, a aceitação da vida como um todo e a preparação para a morte, são dimensões que criam prazer.

Os idosos, em vez de pacientes (restritos a uma receita prescrita por um profissional, que passivamente devem cumprir), são artistas por conta própria. Para tal precisam de dominar a sua arte, conhecer os instrumentos e o material a ser trabalhado, o método apropriado e onde querem chegar. Artistas lúcidos, responsáveis pela sua auto-transformação.

É o tempo para se libertarem de hábitos crónicos, de determinados valores e preconceitos, e de vícios nas emoções, sentimentos e pensamentos, que dificultam uma vida com significado, feliz, inteligente e saudável.

Reconhece-se a plenitude vastíssima do ser humano, em todas as dimensões, onde o corpo é apenas o componente mais denso e perecível.

Apreendendo o envelhecer, desvela-se a morte como um processo pessoal, natural, indiscutível e inevitável para qualquer ser humano na evolução da vida. Enfrentando de maneira consciente e tranquila, reconhecendo o que há de importante nesta etapa para desfrutar, mesmo com limitações, surge uma relação positiva da velhice.

A maioria das pessoas não se prepara para a velhice. Esta etapa está associada à própria morte e não a sabedoria, experiência e respeito, como outrora. Existe uma triste perda do carácter social das pessoas que as transforma num peso para a família e para o Estado.

Falar sobre envelhecer e morrer não faz parte dos temas comuns, nem das conversas informais. Quando se é jovem e mesmo na idade adulta não se pensa ou preocupa com o fim da vida. Este assunto é tratado como algo que está distante e fora de nós. Mas o principal risco para a mortalidade continua a ser a própria idade, ou seja, quanto mais se vive maiores são as hipóteses de morrer. O aumento atual da expectativa de vida deve ser acompanhado por ganhos na qualidade de vida, satisfação e bem estar.

Conquistar espaço para expressar os sentimentos, o modo de se ver e de ver o mundo são ganhos de uma idade avançada. O abandono dá lugar à honra, o engano à opção, a frustração à realização, a falta de valor ao reconhecimento.

A sociedade nega a velhice numa tentativa de adiar os sinais de envelhecimento do corpo. A velhice não pode ser vista como um facto negativo, penoso e doloroso, mas sim como a etapa consequente de realizações acumuladas ao longo da vida.

É difícil envelhecer pacificamente quando a vida foi rica em traumas, frustrações, mágoas, sofrimentos e descontentamentos. Mas a confusão e a dor podem ser prosseguidas por uma aceitação serena.

A morte faz parte da vida, sendo a parte mais importante da vida. A morte não devia ser vista como um inimigo a vencer, mas sim como parte integral da vida que dá um sentido à existência humana.

A sociedade impõe regras onde a morte só poderá chegar àqueles percebidos como “velhos”, no entanto ela não tem preferências, abraça todos. E é um privilégio negado a muitos chegar a velho.

Durante a vida, todos estão num processo gradativo de amadurecimento, em que são acumuladas experiências e conhecimento.

“Quanto mais se vive mais se aprende.”

Envelhecer repercute a ideia de atravessar o tempo, passando por diversos ciclos e etapas, havendo sempre uma renovação. Se vivemos, envelhecemos, e se envelhecemos é porque vivemos.

A velhice e a juventude não fazem parte somente de um período de vida, mas também de um estado de espírito e da escolha da forma como se quer vivê-lo.

Quando a vontade e o saber, construídos durante uma trajetória de vida, são valorizados, entendidos e respeitados, a existência passa a ter um significado. A ideia da morte é associada com a visão da transcendência. A finitude traz a compreensão da vida.

Envelhecer é uma relação de construção de saber e conhecimento, possibilita um amadurecimento em relação ao ser interior, às crenças e valores espirituais ou religiosos, devendo concretizar-se numa vivência mais serena.

O mundo interior e a memória viva das coisas que ficaram para trás revelam a importância da história de vida e experiências.

 Estes acontecimentos perpetuam-se no existir, fortalecendo o vínculo do passado com o presente, promovendo muitos sentimentos na sua existência. A vida tem sentido quando desperta no ser a sensação de plenitude.

Envelhecer é uma graça divina, a fé e a espiritualidade tornam-se algo que nutre e supre o ser. É como que se identificasse algo de inacabado, valorizando-se o crescimento espiritual e a ajuda para seguir o caminho. Este encontro espiritual afasta o medo da morte, tornando-a num processo natural de ascensão.

A espiritualidade ou a religião, como a certeza da presença de Deus, ajuda a ver para além do superficial e transitório, percebendo o que se eterniza. Um ser de possibilidades, em constante crescimento pessoal, vai aperfeiçoando a sua existência. Somente o homem possui o privilégio de experienciar a verdade, saindo de si mesmo na busca de uma possibilidade de crescimento do ser.

A morte é percecionada como uma passagem para a continuidade espiritual, sendo essencial para que a vida se concretize.

“Diante da morte tudo se torna repentinamente puro. Não há lugar para mentiras. E defrontamo-nos com a Verdade, aquilo que realmente importa. Para ter acesso à nossa Verdade, para ouvir de novo a voz do Desejo mais profundo, é preciso tornar-se discípulo da Morte. Pois só ela nos dá lições de Vida se a acolhemos como amiga. A Morte é a nossa eterna companheira. ” Rubem Alves

Um sonho…
Que cada ser humano viva todas as etapas da vida com plenitude, não temendo nenhuma, superando-se até ao fim do ciclo, de mãos dadas com a vida e abraçando serenamente a morte.

Ensaio literário da autoria de Ana Caçapo, Co-fundadora da Cabelos Brancos

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